Antologia de textos com cães dentro.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

PERPÉTUA

Embora tenha já visto melhores dias, a senhora Dona Perpétua de Noronha não se queixava da existência. A pensão do defunto dava-lhe para viver, as rendas dos seus prédios davam para ir vivendo. Amiúde explicava ela aos muitos cães e gatos que albergava em casa residir o segredo da felicidade no equilíbrio, na sobriedade, na justa medida duma boa orientação patrimonial. E os animais obedientemente esperavam a refeição seguinte refreando uma gula sempre adiada. Calcula-se, por isso, a felina incredulidade e a canina indignação quando Dona Perpétua deu de quebrar a sacrossanta trave-mestra de toda uma vida - a medida, o equilíbrio - e começou a empanturrar os bichos com tudo o que há de melhor. Ele era foie gras, ele era bife da vazia, ele era linguado, ele era pão-de-ló. Tanta ou tão pouca foi a fartura que os cães e gatos desconfiaram, crentes natos na última refeição dos condenados. Daí que, um belo dia, Dona Perpétua de Noronha se visse sozinha no seu enorme casarão, rodeada de iguarias a apodrecer nas marmitas, rodeada de solidão e de cheiro a gato escaldado.

Alface
Cuidado com os Rapazes
1995

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