Antologia de textos com cães dentro.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Os meus fantasmas

Uma caneta que não escreve
no momento que o poema
aperta

Cães a ladrar
para espantar a noite
que aperta contra
o poema que a caneta
não escreve

na noite
onde cães ladram
para espantar a caneta
que não escreve
o poema

que aperta
que me aperta

E a caneta que não escreve
e os cães a ladrar para espantar a noite
para espantar a caneta
que mesmo assim
não escreve o poema
que aperta

Os meus fantasmas?
Não são para aqui
chamados

Poema inédito de manuel a. domingos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A RUA (excerto)


Três soldados e um cão atrás

De quem é a graça?
Do cão.
Em que reside?
No cão... familiar e subordinado,
dedicado.
Ou fantasista, repententista.
Quem o sabe?
Cão atrás de soldados.

Era do cão a graça?
Certamente era.
Um cão humano, ou quase,
voluntário e subordinado.
Mais vivo, até mais impressionante,
mais simpático sem o saber
que os seus donos desinteressados.
Guapos rapazes, em todo o caso.
De corpo para a frente,
um pouco desencontrados,
de espingarda ao ombro
conversando e avançando
como uns bonecos articulados.

Três só, à vontade.
E o cão, toca que toca
com as suas quatro patas precipitadas
num salto cadente...
Como uma coisa esquecida!
Humilde e alegre criado,
uma parte da vida
sem valor nem preço
daqueles simples rapazes.

Três... a andar, falando de quê?
Pode-se lá saber, sabe-se lá!
Três numa linha breve,
um traço móvel desta rua torta, matinal e ensoalhada.
Três, com o seu cão atrás.
Aquele bicho malhado
que precisava de os seguir,
de os acompanhar,
de lhes ser um ente familiar.
Aquele cão...
aquele cão, que só pintado!

Irene Lisboa
Seara Nova
1946



Oferecido por Rui Almeida.

A IRONIA

A ironia, essa graciosa coisa
que nos faz rir
do que dá vontade de chorar,
este cãozinho que salta
preso à trela, atrevido e reprimido,
a ironia... a minha ironia!
queria-a eu tão medida e inteligente,
tão rebuçada, tão independente
e tão seca, mesmo,
que mal fosse percebida.

Que no ligeiro riso vissem aquiescência,
na reserva simples dúvida,
na cortesia aceitação...

Que a minha ironia calada,
e quase séria, fosse o meu baluarte.
Adormeceu, diriam os sitiantes...
(Sitiantes, rica palavra!
Os que estão de fora
e comentam intenções, intimidades...)

Ó minha ironia, meu cãozinho!
a tua voz... é um latido
muito pouco musical e breve,
quase ríspido, de puro desenfado.
Ou se o não é,
por imperfeitamente educada,
queria que eu fosse!

Irene Lisboa
Seara Nova
1936


Oferecido por Rui Almeida.

cão

um cão
a andar sozinho pelo passeio num quente
verão
parece ter o poder
de dez mil deuses.

porquê?

Charles Bukowski
Love is a Dog from Hell
1977

versão de manuel a. domingos

terça-feira, 13 de novembro de 2007

À MESA DO AMOR

10.

A minha alegria tem mais de quatro sílabas
e o dia de hoje é feito com pedaços de um
cão: focinho, patas, cauda, orelhas, dentes, peito e flancos.
Esta alegria é afluente do cão incompleto,
dia pródigo, diferente de outros dias, bárbaro
em sua luz, no modo como caminha e se diz
vocábulo monossilábico - o dia: o cão.
Dia de cão, dia de estrela branca, rodando, perseguindo a cauda.
Cão nervoso, flexível, alto. Dia áspero,
maduro, transparente, dia animal,
cão de cristal ou lâmpada ou éter
que evapora na tarde, cão que arde, instável,
amável e doente. Cão de um dia, cão
da minha alegria. Irreparável. Inocente.

Joaquim Pessoa
À Mesa do Amor
Átrio
1994

AS CRIANÇAS FALAM (excertos)


“O cão foi a casa da mãe. Depois encontrou um lobo. Depois o lobo foi atrás da mãe. E depois o urso foi atrás do lobo. E depois o lobo foi para casa da mãe morder. Depois o lobo foi atrás do cão. E depois o cão mordeu a mãe. E o cão foi para casa.”
Acabou?
“Não, ainda falta muito.
E depois o cão foi para a piscina e depois o cão da piscina tinha o rabo molhado. Depois o cão disse à mãe para ir aos anos. Depois o cão foi atrás da mãe depois o cão mordeu a mãe. Depois o Dadá foi à minha casa. E foi ao Jardim Zoológico comigo.

Ainda não acabou...

Depois o cão estava à noite e chegou fora da varanda. Depois o cão foi atrás da mãe. E depois o cão tirou a carteira à mãe.”

Intervém o Carlinhos (6a. 4m.):

“A mãe é cão? Uma mãe que não é cão? Então é a dona. A Joana está a complicar as coisas.”

Continua a Joana (3a. 11m.):

“E depois a mãe deu uma carta ao cão. Depois o cão deu uma carta à mãe. Já acabou.”

– // –

“Quero dizer uma história!

Era uma vez um gato maltês. E era uma vez um cão maltês. E o cão maltês casou com o gato maltês. E depois apareceu um boi. E depois o boi rosnou. E depois o cão maltês e o gato maltês acharam que era muito barulho. E depois foram à janela ver e viram que era um boi e mandaram o boi embora.”

Miguel, 5a. 10m.

– // –

Pintando o Pimpão:

Guidinha, 5a. 2m. (comenta, sobre pintura do Filipe):
– “Um cão com quatro patas!”

Filipe, 6a. 1m. (imediato):
– “Ah! Então como é que tu querias? Um cão tem quatro pernas.”

depois, a rir, diz:
– “Se tivesse só duas era uma galinha.”

A Guidinha imita o andar de um cão, sem apoiar os braços no chão.
O Filipe tem a mesma atitude que nas frases e imita com braços e pernas no chão.

– // –

“Quer ouvir a cantiga do caracol?

O cão vai partir o caracol
mas ele não é capaz.
O cão vai pedir à menina
que parta o caracol
e a menina diz assim:
vou partir o caracol.
E depois já partiu
e o caracol vai para casa.”

Julieta, 3a. 4m.

– // –

C. – “Eu também “
F. – “Eu também quero dizer uma história.”
C. – “Uma vez era um menino...”
F. – “Eu também, sim?”
C. – “ Uma vez era um menino que estava em cima do telhado de uma casa e ele queria saltar de lá. Depois deu um salto para cima de um cavalo. Depois o homem disse: Ó menino olhe que o cavalo não é seu, é meu. E depois a mãe ia à compras e viu o filho em cima do cavalo e foi com ele às compras. E depois ele queria ir à escola e a mãe levou à escola. E depois a mãe levou para a escola e o menino fez pintura, foi almoçar e começou a brincar com os talheres. E depois tiraram os talheres. Depois puseram outra vez e ele comeu. Depois telefonou para a mãe e a mãe veio cá buscar e o menino foi para casa. Depois tinha um cão grande e o cão estava na casota lá fora e os patinhos estavam dentro de casa. Amanhã conto mais. Amanhã acabo.”

Carlinhos, 5a. 8m.
Francisco, 4a. 1m.

– // –

“Era uma vez um cão que quando as pessoas corriam atrás dele, o béu-béu corria atrás das pessoas.”

Pilar, 7a. 10m.
História manuscrita

Adriana Areal Calvet e Elsa Anahory (recolha e selecção)
Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite, 1973


Oferecido por Rui Almeida.

Lenda do Cão Maior e do Cão Menor

O Cão Maior e o Cão Menor eram os cães de caça de Orionte. O Cão Maior era tão veloz que podia apanhar qualquer animal. Por isso, tinha muito valor para Orionte.
Os Egípcios antigos viam a brilhante estrela Sírio como o deus Anúbis, o deus com corpo de homem e cabeça de chacal. Quando Sírio aparecia no horizonte antes do nascer do Sol, era a época das cheias do Nilo, que era de grande importância para os agricultores que viviam ao longo do rio, dado que as cheias traziam o lodo que tornava as terras mais férteis. Ficou conhecido como Estrela do Cão (Sírio) e os dias quentes de Verão, entre Julho e princípios de Setembro, foram designados por dias de canícula.

Milton D. Heifetz e Wil Tirion
Um Passeio pelos Céus – Um Guia de Estrelas, Constelações e Lendas
Tradução de Máximo Ferreira
Gradiva, 1998
Oferecido por Rui Almeida.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O UIVO

Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.

Luís Miguel Nava
Rebentação
1984

OS OSSOS

Um dia, ao acordar, deu por ter deixado todos os seus ossos num dos sonhos, do qual, como dum espelho, a carne e a roupa juntas irrompiam. Nunca mais desde então os pôde espetar na realidade, coisa que antes tanto se orgulhava de fazer.
Talvez num cão fosse possível encontrar a necessária obstinação para os trazer de novo à superfície. Contudo, a tal profundidade os ossos estariam que, por muito que o animal escavasse, sob as suas patas haveriam de romper as águas de mil rios, pedras, folhas, a enxurrada do universo e, embravecido, o próprio mar, mais tudo aquilo ainda de que habitualmente os sonhos se compõem, antes que deles se deixasse adivinhar o mais breve vestígio.

Luís Miguel Nava
O Céu Sob as Entranhas
1989

O LUGRE (excerto)

TI JOÃO DAS ALMAS: O Albino não foi sempre como hoje é. Eu conheci-o em novo: primeira linha do lugre «Senhora do Mar»!
ZÉ ESPADA: Primeira linha?! (Gargalhada.) Nunca o foi, nunca!
TI JOÃO DAS ALMAS: Tão verdade, como haver Deus no céu: primeira linha, o melhor pescador daquele navio! Digo-te eu, Zé Espada: dobra a língua e não me desmintas!
TÓ VERDE: Pois agora nem pra moço serve... Primeira linha!?
TI JOÃO DAS ALMAS: (tristemente): Foi depois do naufrágio que ele ficou assim: o «Senhora do Mar» afundou-se, a navegar para a Gronelândia, com fogo a bordo. Alguns de vocês hão-de estar lembrados: tu, Zé Robalo, estvas a bordo... e tu, Cara Dura, levavas o teu irmão de contramestre nesse lugre... (Silêncio; evocando.) Onze dias e onze noites no mar: sem água, sem comer, sem roupa, sem nada! (Irado, para os novos.) Vocês... vocês sabem lá o que isto é? Nem tu, Zé Sol; nem tu, Tó Verde; nem tu, Zé Espada... não sabem, não sabem! Onze dias e onze noites! Eram trinta e dois homens e oito botes: quatro em cada dóri. Sabem quantos se salvaram? (Com força, levantando-se.) Sete. Sete, oiçam bem! Os outros morreram todos: muitos de fome e de sede, alguns levados pelas ondas, e uns cinco – ai! estes eram os mais medonhos, aqueles que uma criatura nunca mais pode esquecer, nem de dia, nem de noite! – de juizinho varrido, atiraram-se ao mar, aos gritos, com os olhos rebentados... Nem me quero lembrar! Que Deus me perdoe, mas quando penso naqueles dias, naquelas horas malvadas que nunca mais acabavam... dá-me vontade de cuspir prò céu! (Severo, indignado.) Que admira, que admira, digam-me cá, que o Albino, depois disto, não ficasse o mesmo homem?!...
ZÉ ESPADA: Esta agora! então não querem ver?! Naturalmente foi ele o único que naufragou... A gente sempre ouve cada brisada!
TI JOÃO DAS ALMAS: Assim, do mesmo modo que ele, poucos, raros em toda a frota, fiquem vocês sabendo! Onze dias e onze noites... Ah homens, olhem que no bote do Albino só escapou ele e mais ninguém! Para se aguentar, teve que matar o cão de bordo: e ele gostava do bicho, como se alma cristã fosse! Comeu-lhe a carne crua e bebeu-lhe o sangue ainda quente... É ou não verdade isto, ó Zé Robalo?

Bernardo Santareno
O Lugre – peça em seis actos
1959


Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO


À noite ou no dia, ele
sempre acorreu.
Mas no fundo do olho

vigia ainda
uma surpresa, um quê
de indiferente aos chamados.

Quando corre em círculos
à nossa volta ou quando
dormita junto ao fogão,

o uivo antigo
espreita em seu hálito.
(Quem o tiraria de lá?)

Para cumprimentá-lo
seria preciso
ladrar.
Renato Suttana
Bichos
Oferecido por Nicolau Saião.

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