A certo momento pararam. O cão ensanguentado gania. Mas não estava morto.
(Somos todos irmãos, irmãos.)
Vamos supor que se chamava Maria e era uma mulher má e falsa. Um dia, de noite, sem perceber porquê, tinha dois homens à sua volta. Foi agarrada, atirada ao chão, violada.
Maria chegou a casa e nada conseguiu dizer. A sua irmã chorava. Maria tinha os olhos vermelhos, o corpo negro, tremia, não conseguia falar. Sangue na roupa.
E por Maria - que era mulher má, sempre fora intriguista, falsa - por ela choraram certas pessoas. Cinco pelo menos (que eu contei): a irmã, a mãe, o pai, uma rapariga (por vezes falavam); e uma outra pessoa que nunca até hoje se viu.
Que me importam os cães? Um animal é tanto ou menos que uma máquina e na luta dos dois que vença o melhor. Bater num cão é o mesmo que espancar uma máquina. Que adianta, que maldade é essa?
O acaso e as circunstâncias. É o destino, o cruzamento entre o acontecimento e um homem, que amplia ou não o reino da banalidade. Pouco depende do homem - quase tudo é importo pelo dia, pelas suas exigências de causas quase sempre obscuras.
E o único fenómeno estranho ao instinto de sobrevivência que manda em qualquer pessoa, animal ou anjo que exista, é o amor. Mas o amor é tão popular entre os vivos que se tornou num sentimento da multidão: há que receá-lo como se receia a palavra de ordem de qualquer ajuntamento exaltado.
O cão pode ser visto como música equilibrada (harmonia é a palavra) devido às suas quatro patas (como uma mesa orgânica). Mas se ao cão se cortar uma das patas a nossa vida altera-se, e sangra tudo, como quem é traído por uma mulher ou pela morte do pai.
Gonçalo M. Tavares
Água, Cão, Cavalo, Cabeça
2006