[...] E que valiam as garras de Adão, mesmo aliadas às garras de Eva, contra esses pavorosos leões do Jardim das Delícias a que a Zoologia, ainda hoje, arrepiada, chama o Leo Anticus? Ou contra a hiena-espeleia tão ousada, que, nos primeiros dias do Génesis, os anjos, quando desciam ao Paraíso, caminhavam sempre com as asas arregaçadas, para que ela, saltando de entre os bambus, lhes não arrancasse as penas refulgentes? Ou contra os cães, os horrendos cães do paraíso, que, atacando em cerradas e ululantes hostes, foram, nesses começos do homem, os piores inimigos do homem?
[...]
Outros gostos e modos de Eva o irritam também: e por vezes, com uma desumanidade que é já toda humana, nosso Pai arrebata pelos cabelos a sua fêmea, e a derruba, e a pisa sob a pata calosa. Assim um furor o tomou, uma tarde, avistando, no regaço de Eva, sentada diante da fogueira, um cachorrinho mole e trôpego, que ela, com carinho e paciência, ensinava a sugar numa febra de carne fresca. À beira da fonte descobrira o cachorrinho perdido e ganindo; e muito mansamente o recolhera, o aquecera, o alimentara, com uma sensação que lhe era doce, e lhe abria na espessa boca, ainda mal sabedora de sorrir, um sorriso de maternidade. Nosso pai venerável, com as pupilas a reluzir, atira a garra, quer devorar o cachorro que entrara na sua toca. Mas Eva defende o animal pequenino, que treme e que a lambe. O primeiro sentimento de caridade, informe como a primeira flor que brotou dos limos, aparece na Terra! E, com as curtas e roucas vozes que eram o falar de nossos Pais, Eva tenta talvez afiançar que será útil, na caverna do homem, a amizade de um bicho... Adão puxa o beiço trombudo. Depois, em silêncio, mansamente, corre os dedos pelo lombo macio do cachorrinho encolhido. E este é, na história, um momento espantoso! Eis que o homem domestica o animal! Desse cachorro agasalhado no Paraíso nascerá o cão amigo, por ele a aliança com o cavalo, depois o domínio sobre a ovelha. O rebanho crescerá; o pastor o levará; o cão fiel o guardará. Eva, da beira do seu lume, prepara os povos errantes que pastoreiam os gados.
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Eça de Queiroz
Adão e Eva no Paraíso
1897
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Outros gostos e modos de Eva o irritam também: e por vezes, com uma desumanidade que é já toda humana, nosso Pai arrebata pelos cabelos a sua fêmea, e a derruba, e a pisa sob a pata calosa. Assim um furor o tomou, uma tarde, avistando, no regaço de Eva, sentada diante da fogueira, um cachorrinho mole e trôpego, que ela, com carinho e paciência, ensinava a sugar numa febra de carne fresca. À beira da fonte descobrira o cachorrinho perdido e ganindo; e muito mansamente o recolhera, o aquecera, o alimentara, com uma sensação que lhe era doce, e lhe abria na espessa boca, ainda mal sabedora de sorrir, um sorriso de maternidade. Nosso pai venerável, com as pupilas a reluzir, atira a garra, quer devorar o cachorro que entrara na sua toca. Mas Eva defende o animal pequenino, que treme e que a lambe. O primeiro sentimento de caridade, informe como a primeira flor que brotou dos limos, aparece na Terra! E, com as curtas e roucas vozes que eram o falar de nossos Pais, Eva tenta talvez afiançar que será útil, na caverna do homem, a amizade de um bicho... Adão puxa o beiço trombudo. Depois, em silêncio, mansamente, corre os dedos pelo lombo macio do cachorrinho encolhido. E este é, na história, um momento espantoso! Eis que o homem domestica o animal! Desse cachorro agasalhado no Paraíso nascerá o cão amigo, por ele a aliança com o cavalo, depois o domínio sobre a ovelha. O rebanho crescerá; o pastor o levará; o cão fiel o guardará. Eva, da beira do seu lume, prepara os povos errantes que pastoreiam os gados.
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Eça de Queiroz
Adão e Eva no Paraíso
1897
Oferecido por Rui Almeida.