Antologia de textos com cães dentro.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O CÃO VIAJANTE

A notícia veio de São Paulo, trazida por Anhembi. Foi o caso que certo cavalheiro de posses – um grã-fino, diz a revista – regressou dos Estados Unidos em companhia de um cachorro de raça, lá adquirido. No aeroporto de Congonhas, diante dos funcionários da Alfândega, houve a abertura de malas, e verificou-se que quatro eram do cachorro: uma com roupas, outra com coleiras e focinheiras; uma terceira com vitaminas, e a última com alimentos especiais.
O comentarista fala na Revolução Francesa, que reagiu contra coisas dêsse gênero, e na Revolução Russa, que reuniu em museu as jóias oferecidas pelos aristocratas a seus cães e cavalos. Expus o caso a um cachorro de minhas relações, chamado Puck, e êle manteve comigo, por meio dos olhos e da cauda saltitante, êste diálogo quase maiêutico, embora às avessas.
– As malas eram quatro, diz você?
– Realmente, meu caro Puck.
– Com certeza eram malinhas à-toa...
– Não consta da notícia, mas presumo que fôssem malas consideráveis.
– E você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito a mala?
– Não é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante tão sóbrio de natureza, como – não é por estar em sua presença – eu considero o cão.
– E quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
– A revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
– Você acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e seu cão não tenha pelo menos quatro?
– Mas veja bem, Puck, o homem é um animal complicado e que se afastou da natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou desprezam.
– Essas coisas são necessárias à vida?
– São, na medida em que a tornam mais agradável.
– E não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de outros animais em condições de saboreá-las?
– Teòricamente, talvez. Não acha, porém, que seria caso de estendê-las antes a todos os homens?
– Elas chegam para todos?
– No estado atual da produção, é capaz de não chegarem.
– Então, que adiantaria?
– Pelo que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a minha, quando as duas se entendem há milênios.
– Engano, meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo precisamente um comêço tímido de sensibilidade, a abotoar-se como uma florzinha anêmica. Todo êsse cuidado com o cão, um simples cão (pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as criancinhas, e dia virá em que...
– Êle se estimará a si mesmo, através dos outros?
– Não vou a tanto – resmungou Puck. – Também, você está exigindo demais de seus semelhantes.


Carlos Drummond de Andrade
Fala, amendoeira
1957
Oferecido por Rui Almeida.

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