Antologia de textos com cães dentro.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

O cão de Dürer

O cavaleiro, quem sabe, volta de uma guerra, a dos Sete Anos, a dos Trinta Anos, a da Duas Rosas, a dos Três Henriques, uma guerra dinástica ou religiosa, ou quiçá de uma guerra pouco sangrenta, no Palatinado, nos Países Baixos, em Boémia, não importa onde, tão-pouco importa quando, todas as guerras são fragmentos de uma única guerra, a guerra sem nome, a guerra somente, a Guerra, o cavaleiro volta de um dos segmentos da Guerra, mas é como se tivesse viajado através de todos os reinos da Guerra porque todos repetem as mesmas confusões e as mesmas infâmias, de maneira que não há que ter escrúpulos cronológicos nem geográficos, os Plantagenet e os Hohenstaufen formam uma única família desordeira, os lansquenetes misturam-se com os granadeiros, os balestreiros com os arcabuzeiros, juntam-se cidades com cidades, castelos com castelos, torres com torres, em todas as batalhas morrem os mesmos mortos e todos os mortos apodrecem debaixo do mesmo sol e debaixo da mesma chuva, o cavaleiro, pois, regressa de uma conta no rosário da Guerra, ele acredita que é a última e não sabe que o rosário é infinito ou que é finito mas circular e que o Tempo desgrana-o como se fosse infinito, o cavaleiro partiu jovem e galhardo e volta velho e seco como uma casca seca, tão-pouco isto é uma novidade porque a Guerra carece de imaginação e todas as guerras repetem os mesmos truques, todos os cavaleiros que atravessaram uma província da Guerra sem cair na cilada da Morte voltam velhos e ressequidos como uma casca seca, o cavaleiro tem a barba crescida, está sujo de pó, cheira a suor, a sangue e a imundície, os piolhos alojam-se nos seus sovacos, uma borbulhagem arde-lhe na pele entre as coxas como uma queimadura, escarra uma saliva verdosa sulcada de filamentos azul-violeta, fala com a voz enrouquecida pelo frio e pelo fogo, tem os olhos vermelhos dos insones e dos bêbados, esqueceu a linguagem florida que falava quando era adolescente e servia como pajem na corte de algum Margrave ou de algum Arcebispo, agora pronuncia blasfémias e juramentos sacrílegos, olvidou as graciosas reverências de antigamente, as danças delicadas ao som da espineta, já não pede amor às mulheres, pede-lhes vinho, comida, um leito, e enquanto os soldados violam as raparigas ele bebe solitário e taciturno, até que os soldados reaparecem bocejando e então ele dá um murro na mesa e maldiz os reizetes que fogem da batalha pálidos e com a roupa feita em trapos num corcel sudoroso, para voltarem a surgir no fim da batalha vestidos a ouro, debaixo de um pálio rico, no meio de um alvoroço de auriflamas e estandartes, maldiz o Papa coberto de arminho que desde o alto da cadeira gestatória asperja com água benta os selos escarlates das alianças e das coligações, maldiz o Imperador a quem viu uma vez caminhar entre lanças erguidas como falos à vista desse simpático rapaz da Guerra, o cavaleiro põe-se de pé e tomba a cadeira, tomba a mesa, os copos e o jarro de vinho, os soldados dão bastonadas no dono da taberna, a taberna é incendiada e a tropa retoma a marcha com o cavaleiro à frente, atravessando agora um bosque à luz da lua, o cavaleiro está mudo, os olhos fixos na noite, os soldados calam-se um a um, adormecem sobre as cavalgaduras, sonham com a cabeça caída sobre o peito, um crê ouvir uma música distante, a música da sua meninice numa qualquer aldeia do Ducado de Milão ou da Catalunha, outro crê ouvir vozes que o chamam, a voz da sua mãe ou da sua mulher, alguém lança um grito e desperta sobressaltado, mas o cavaleiro não se volta para olhar quem gritou como se o grito fosse o de um pássaro no bosque, segue em frente com os olhos fixos na noite, o soldado que vai atrás dele, o que está mais próximo do cavaleiro, o soldado que leva uma bandeira desfiada e queimada pela pólvora que agora pende sobre a garupa do cavalo como uma gualdrapa ranhosa, esse soldado, um mancebo ruivo com a aparência de um jogral, subitamente tem um estranho pensamento, a ideia de que a armadura do cavaleiro cavalga vazia, a ideia de que o cavaleiro se extinguiu dentro da armadura e agora a armadura é um boneco de ferro sem o seu recheio de estopa e de serradura, imagina isto porque nunca viu o cavaleiro senão revestido da armadura que sustém a lança, esses guarda-braços e manoplas que assinalam as nortadas da Guerra, o elmo que ulula ordens e maldições e debaixo do elmo a pelagem emaranhada, mas quem sabe a pelagem não é uma barba sem rosto, um pouco de palha ou de erva que cresceu dentro da armadura, e esta ideia, esta fantasia faz rir o soldado ruivo que pensa que talvez tenha passado muito tempo desde que o cavaleiro dissecou no interior da armadura, muito tempo desde que a armadura se esvaziou do cavaleiro e eles seguiram de batalha em batalha atrás dessa armadura oca desafiando a Morte porque acreditavam que o castanholar da viseira e o ranger das dobradiças da armadura eram a voz rouca do cavaleiro, e quando o porta-estandarte ruivo ri como um sonâmbulo ou como um ébrio o cavaleiro ergue-se sobre a clavícula dos estribos e irrompe numa maldição, como se tivesse adivinhado de que se ria o porta-estandarte e quisesse fazer-lhe uma partida, demonstrar-lhe que continua vivo no interior da armadura, ou repreendê-lo por essa fantasia da armadura vácua, o soldado ruivo encolhe-se de medo mas compreende de seguida que o cavaleiro não se espevitou nem blasfemou por causa do seu riso mas antes devido às árvores do bosque, até esse momento enregeladas debaixo da lua como debaixo de um nevão no Inverno, cobrem-se de flores e de frutos repentinamente, ficaram cobertas dessa floração que o calor da Guerra faz brotar durante as quatro estações, no bom tempo e no mau tempo, nas regiões férteis e nas regiões áridas, cobriram-se desses frutos sempre no tempo oportuno, sempre maduros para a ceifa e a colheita, quero dizer o inimigo, quero dizer os inimigos inextinguíveis que nos aguardam ocultos na sombra, escondidos na névoa e no fumo, e então os ginetes sonolentos mas tudo isto já sucedeu, tudo isto já passou e agora o cavaleiro regressa sozinho ao seu castelo sem a mescla estranha e confusa de ferros, de homens e de cavalos que o escoltavam na sua viagem através de uma província da Guerra, já deixou todo esse estrépito para trás, abandonou para sempre os bivaques, as emboscadas, os saqueamentos, a fome, o terror, o sonho, não conserva da Guerra senão o cavalo, a armadura, a lança com a pele de raposa num extremo para que o sangue dos lancetados não escorregasse e lhe empapasse a mão, conserva o odor a imundície, os piolhos, a borbulhagem, a fadiga, a magreza, a velhice e as recordações, as recordações, as recordações, recordações soltas, recortadas da grande e berrante tela da Guerra, um jovem caído sobre a erva, de cara ao céu, que se afundava num rio indiferente, o Meno, o Tejo, o Arno, que afundava as pernas até aos joelhos no rio e o rio tomava as pernas do rapaz e levava-as pela corrente abaixo convertidas em fiapos, em ervas purpúreas, depois rosáceas e depois cinzentas e ocres, os dez patíbulos numa praça imensa e deserta e em cada patíbulo um réu, pendendo com a língua de fora, sino de badalo de carne arroxeada que o vento fazia soar, que o vento fazia dobrar e o campanário de dez sinos dava sempre a mesma hora fora do Tempo, o ancião que se agachava para defecar no solo gelado e coberto de neve e que de seguida desabava sobre uma mancha de sangue e de excremento, a mancha da disenteria, a torre alta, quadrada, de ladrilhos e uma fila de ciprestes mais distantes, e o jorro de pez ardente que caiu das ameias da torre sobre os cavaleiros de túnica branca e uma cruz escarlate no peito, sobre os cavaleiros que eram todos jovens e belos e pouco antes tinham assistido à missa que um bispo repleto de pedras preciosas havia oficiado para eles, e a cratera negra aberta pela pez ardente, o buraco que fumegava e crepitava como uma sertã ao lume, o cavaleiro percebeu aquele aroma doce, aquele odor a fritura e a pano queimado, sentiu um ardor sobre a mão, olhou e viu que era um pedaço de carne, um pedaço da carne de algum daqueles cavaleiros que um pouco antes ouviam missa e se entregavam a Deus, porque isto tinha sido a Guerra para ele, ainda que, quem sabe, para os reizetes fosse outra coisa, e outra para o Papa e para o Imperador, um jogo de xadrez que jogariam à distância, cada um fechado numa cidade, numa fortaleza, num palácio, até que terminada a partida sairiam um ao encontro do outro e apertariam a mão como bons contendores e repartiriam entre si as terras onde os frutos já haviam sido ceifados e colhidos, mas agora o cavaleiro saltou para fora do tabuleiro de xadrez de Papas e Imperadores, agora o cavaleiro volta ao seu castelo e no castelo livrar-se-á da sua armadura como de uma crosta seca, tirará o elmo como uma cabeça estranha, no castelo é aguardado pelo falcão, o alaúde, a mesa posta, o leito quente, sua mulher, seus filhos, os reizetes que ele salvou da ignomínia encheram-no de honrarias, o Papa e o Imperador que moveram as peças da Guerra farão dele um conde palaciano, assistente do Trono, senhor de aldeias e vinhedos, até que ao dobrar uma esquina do caminho vê sobre a colina intacta o seu castelo intacto, vê a campina ao redor, vê os camponeses dobrados sobre as sementeiras, vê um cão, um cão vagabundo e vadio, um cão que corre em várias direcções entre as ervas daninhas e se detém aqui e acolá a farejar o rastro de outros cães, e ante esse quadro pacífico do castelo, dos lavradores e do cão, o cavaleiro pensa que assim como a ele escapam as chaves da Guerra que apenas os Papas e os Imperadores conhecem e quiçá os reizetes adivinhem, a estes camponeses dobrados sobre os sulcos está negado conhecer a faina terrível da Guerra, a Guerra terá sido para eles uma notícia difusa, um resplendor de incêndio no horizonte, a passagem das tropas pelo caminho, e quanto ao cão, pensa o cavaleiro, nem sequer supôs que havia guerra, que havia pilhagem e matanças, e tratados abençoados pelo Papa, e um Imperador que fazia erguer as lanças como falos, o cão terá continuado a comer, a dormir, emparelhando-se com uma cadela e ignorando que ao longe, onde o cavaleiro guerreava, as fronteiras desfaziam-se para voltarem a refazer-se num novo desenho, o cão nunca saberá que um Vigário de Cristo era arrastado pelas ruas, que um Imperador se apoiava nu, dia e noite, diante de uma porta que não se abria, nunca saberá que a flor da cristandade tinha fervido em pez e em azeite e que um campanário de enforcados dava a hora da eternidade naquela vasta praça deserta, porque para o cão o trovão da Guerra seria o mesmo ruído pavoroso do trovão da tempestade, e se tivesse visto o simpático rapaz da Guerra tinha-lhe ladrado como a um desconhecido ou tinha abanado a cauda se lhe parecesse simpático ou lhe desse algo de comer, de modo que o cavaleiro sente orgulho em ser cavaleiro, de ter sido uma das peças do xadrez da Guerra, o cavaleiro compreende agora que há planos da realidade que não se comunicam entre si, e que se os Papas e os Imperadores ficam nos planos mais altos, ele não está no mais baixo, porque abaixo dele sempre estão esses camponeses que nem sequer fazem a Guerra, que nem sequer fazem o trabalho da história, esses camponeses anónimos sempre dobrados sobre os terrenos, e mais abaixo está ainda o cão, e aqui o cavaleiro experimenta um vago assombro, esse cão contemporâneo de Papas e Imperadores que ignora o que é um Papa, o que é um Imperador, que nem sequer sabe o que é um cavaleiro, experimenta uma espécie de sobressalto frente ao cão que vem ao seu encontro sem suspeitar as catástrofes e as façanhas que aureolam a armadura do cavaleiro, e prosseguindo com este raciocínio, prosseguindo com esta cadeia de raciocínios que se inicia no cão, o cavaleiro pensa que os últimos círculos desta hierarquia talvez não sejam nem o Papa nem o Imperador, porque assim como o cão ignora o que sabem os camponeses, assim como os camponeses ignoram o que o cavaleiro sabe e assim como o cavaleiro ignora o que sabem os reizetes e estes o que sabem os Papas e os Imperadores, da mesma maneira os Papas e os Imperadores ignoram o que apenas Deus sabe na sua totalidade e na perfeição da verdade, e estas reflexões aplicadas à Guerra, este crer que também para Deus a Guerra será uma coisa distinta da que é para os Papas e os Imperadores desperta no cavaleiro a esperança de que se os Papas e os Imperadores que dominam o jogo da Guerra o encheram de honrarias, Deus, que domina o jogo de Papas e Imperadores, o satisfará com honrarias ainda maiores, irá premiá-lo pela dor, pela fome e pela sede de que padeceu na Guerra, talvez Deus lhe retribua um a um todos os sacrifícios que ele fez na Guerra e lhe abra as portas do paraíso, e justamente quando esta esperança reconfortava o cavaleiro e o fazia sorrir, o cão, que vinha ao seu encontro, detém-se como diante de uma parede, crava as patas no solo, fica com a pele eriçada, entreabre o focinho, mostra os dentes e começa a uivar lugubremente, mas o cavaleiro crê que é porque o cão não o conhece, porque o cão se espantou com o cavalo, com a armadura, com a lança com a cauda de raposa num dos extremos, não há que surpreender-se por esse cão de camponeses se assustar frente a um cavaleiro coberto de ferro, frente a um cavalo adornado com testeiras e peiteiras, pelo que o cavaleiro não dá nenhuma importância à atitude do cão e segue avançando pelo caminho rumo ao castelo, os cascos do cavalo estão perto de esmagar o cão, o cão muda de lado com um salto e continua a uivar, continua a gemer e mostrando os dentes enquanto o cavaleiro voltou a pensar na sua mulher, no falcão e no alaúde de amor, e esquece-se do cão, o cão ficou para trás na sua memória como ficou a Guerra, e assim é que o cavaleiro não sabe que o cão farejou ao redor da armadura a exalação da morte e do inferno, pois o cão já sabe o que o cavaleiro ainda não sabe, o cão já sabe que na virilha do cavaleiro uma borbulha começou a destilar as secreções da peste negra, e que a Morte e o Diabo aguardam o cavaleiro ao pé da colina para o levarem com eles, porque se o cavaleiro lê-se o que agora escrevo pensaria, seguindo uma ordem análoga ao sentido dos seus raciocínios anteriores ainda que em sentido inverso, o cavaleiro pensaria que assim como o cão se deteve onde o cavaleiro passa apressadamente, assim também os cavaleiros acaso se detenham onde os Papas e os Imperadores passam apressadamente, de modo que talvez os Papas e os Imperadores ignorem os cavaleiros, pensaria que a guerra dos cavaleiros é, para Papas e Imperadores, como o fedor da Morte e do Diabo que apenas os cães farejam, e sempre dentro deste raciocínio o cavaleiro pensaria que talvez os Papas e os Imperadores se detenham onde Deus passa apressadamente, que talvez joguem um xadrez que não conta para Deus, quero dizer que talvez Deus não veja esse tabuleiro e a seus olhos o sacrifício das peças não valha nada e o cavaleiro não seja absolvido dos seus pecados em graça do seu primor na Guerra nem seja recebido no Paraíso, quero dizer que se o cavaleiro raciocinasse desta maneira pensaria que talvez as realidades que atraem os homens, sejam reis ou camponeses, formem um tecido que não atrai Deus do mesmo modo que o cavaleiro atravessou, sem vê-la, a malha que o cão não atravessa, não obstante a malha ter sido urdida para o cavaleiro e não para o cão, não obstante as realidades dos homens estarem entrançadas para Deus, mas o cavaleiro não lerá o que agora escrevo e já chega ao pé da colina, feliz com a esperança de que a sua vida tenha entretecido a rede na qual cai-a a mosca Papa, na qual cai-a a mosca Imperador, feliz com a esperança de que Papas e Imperadores tenham tecido a outra rede na qual cairá Deus, enquanto lá em baixo, no caminho, o cão que confunde o trovão da Guerra com o trovão da tempestade segue e continua empreendendo uma outra guerra na qual o cavaleiro confunde o latido da morte com o latido do cão.
Marco Denevi
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