ACTO II
Dia seguinte. A mesma hora. O mesmo lugar.
No centro, junto à boca de cena, as botas de Estragon, tacões juntos, biqueiras afastadas. O chapéu de Lucky no mesmo sítio. A árvore tem quatro ou cinco folhas. Entra Vladimir, agitado. Pára e olha durante algum tempo para a árvore, começa então de repente a andar febrilmente pelo palco. Pára junto às botas, agarra numa, examina-a, cheira-a, exprime nojo, pousa-a cuidadosamente no mesmo sítio. Anda de um lado para o outro. Pára na direita e olha para longe protegendo os olhos com a mão encostada à testa. Anda de um lado para o outro. Pára na esquerda, faz o mesmo. Anda de um lado para o outro. Pára e começa a cantar alto.
VLADIMIR
Um cão entrou na —
Tendo começado num tom demasiado agudo, limpa a garganta e recomeça.
Um cão entrou na cozinha
E roubou um chourição.
Chega o chefe com o rolo
E fá-lo em massapão.
Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão —
Pára, medita, recomeça:
Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão.
E na pedra lhe escreveram
A seguinte inscrição:
Um cão entrou na cozinha
E roubou um chourição.
Chega o chefe com o rolo
E fá-lo em massapão.
Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão —
Pára, medita, recomeça:
Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão —
Pára, medita, Suavemente:
A enterrar o pobre cão...
Fica calado e quieto durante algum tempo, começa então a andar febrilmente pelo palco. Pára em frente à árvore, anda de um lado para o outro, pára em frente às botas, anda de um lado para o outro, pára na direita, olha para longe, pára na esquerda, olha para longe. Estragon entra pela direita, descalço, cabisbaixo, atravessa o palco lentamente. Vladimir volta-se e vê-o.
Samuel Beckett, in À Espera de Godot, trad. José Maria Vieira Mendes, Cotovia, 6.ª edição, Agosto de 2015, pp. 77-78.