Morreu o Boneco. Às onze da noite pedi ao Dr. P. D. que viesse para o abater. Foi uma decisão rápida, depois de tomar consciência de que ele começava a sofrer sem poder ter mais repouso senão a morte.
O Boneco era o cão mais desleal do mundo, excepto para mim. Foi vadio a valer, descuidado, poltrão e agressivo. Teve duas pneumonias graves, foi gravemente mordido por duas vezes a ponto de ficar com a garganta aberta. Teve uma otite e ficou surdo. Caiu duma escada e partiu o pescoço, e usou gesso como um cavaleiro que caísse da montada. Mordia toda a gente, se pudesse. Era velhíssimo e ainda prometia dentadas. Estava cego e ainda corria as visitas pela porta fora. Nunca saí de casa sem o levar na ideia como preocupação e saudade. Chamava-lhe Dulho. Ele corria pelas dunas de Esposende e rebolava-se na carcaça das gaivotas. Entrava na vasa do rio e voltava coberto de lodo. Às vezes desaparecia durante dois dias; prendiam-no para pedir resgate por ele. Era um caniche pêlo de arame, daí a má índole, asselvajada. Tinha um nariz redondo e farripas brancas, muito engraçado. Viveu dezassete anos. Está enterrado no jardim de baixo, ao lado do muro que tem a sebe amarela. O Sr. A. fez lá uma cova à luz duma lanterna de bolso e enterrou-o, embrulhado no resto daquela manta que eu trouxe de Aosta e que o Boneco tinha devorado pouco a pouco, por júbilo ou vingança. Ele tinha passado o Inverno com um casaco que tinha nas costas flores de pessegueiro pintadas. Um casaco de angorá que eu talhei e cosi. Eu gosto do Boneco, daí a escrever a respeito dele sem estilo nenhum. Não me inspira sentenças porque toma o lugar adiante da razão.
7 de Março de 1977
Agustina Bessa-Luís, in Caderno de Significados, Guimarães, Outubro de 2013, pp. 29-31.