Encolhido sobre um velho blusão de lã rasgado, Juca, o cachorrinho pequinês da minha irmã mais velha, voltava a tremer aos pés da lareira. O fogo morria, deixando em seu lugar apenas duas ou três pequenas brasas que logo também seriam extintas. Eu adorava o calor das chamas, mas tinha aversão ao cheiro forte da lenha queimada que dominava o ambiente quando restavam somente cinzas. Apenas pó.
Naquele anoitecer glacial, o cheiro inimigo parecia vir com todas as suas forças, enquanto um vento úmido e insensível aos meus pavores se infiltrava pelas frestas da grande porta daquela casa de fazenda onde costumávamos passar metade das férias de inverno. Eu desenhava uma paisagem de praia e sol, sentada sobre o grosso tapete de lã de ovelha, e brigava com as pulgas do Juca, com a frieza do mármore da mesinha central, com a insensibilidade do vento e com a lenha morta. Só me faltavam forças mesmo era para enfrentar o sol de cobre, pendurado logo acima da lareira, com seu eterno sorriso malévolo, o cenho franzido e um olhar que me encontrava em qualquer canto da ampla sala para depois debochar dos tremores de meus cinco anos. Evitava ao máximo encará-lo, mas, quando a lareira permanecia acesa, era difícil: as chamas atraíam o meu olhar, e o sol carrancudo ganhava vida ao refletir o baile das labaredas. Por isso, apesar do frio e do vento, não pedi para que avivassem o fogo. O vinho tinto e a conversa ininterrupta esquentavam os adultos, que nem notaram o enfraquecer das chamas. Falavam alto e fumavam muito, tornando o ar ainda mais espesso e desagradável.
— Já que é inevitável, o melhor é nem pensar — dizia meu tio poeta, tentando encerrar o assunto.
— Pois eu acho que temos de pensar, sim, e aproveitar cada momento como se fosse o último — contestava minha tia.
— E sair fazendo loucuras por aí, sem qualquer responsabilidade? Não se esqueçam de que depois temos de prestar contas. Afinal, a morte não é o fim de tudo.
Essa última era a minha mãe, sempre acrescentando algumas pitadas de sermão em suas falas. O pai, racional, contestava com impaciência:
— É difícil para vocês se convencerem de que tudo acaba. Não aceitam o ponto final, então inventam Deus, céu, inferno. Tudo bobagem. Se acabou, acabou. É a inconsciência. Como um sono sem sonhos. Fim.
Na lareira, a última brasa virava cinzas, e o sol de cobre percebia meus arrepios. Na tentativa de não escutar a conversa, eu tentava me concentrar na letra de uma canção que era moda na época: moro num país tropical/ abençoado por Deus/ e bonito por natureza.../ Mas o clima gaúcho em julho não era nada tropical, e meu pai, ainda por cima, duvidava da existência de um Deus a abençoar nosso país. A conversa voltava a invadir meus ouvidos, agora com o optimismo do tio poeta:
— Talvez, um dia, a Ciência ainda consiga driblar a morte. Impedir o envelhecimento das células, combater as doenças. Enfim, deixar que morram apenas os mais descuidados: pára-quedistas, aviadores exaltados, poetas... esse pessoal que não se cuida muito.
— Absurdo. O homem nunca será como Deus — condenava minha mãe.
A intervenção da tia acabou com minhas esperanças restantes:
— Mesmo que a Ciência conseguisse impedir o envelhecimento das células, um dia todos morreríamos. O universo está em expansão. Um dia o mundo vai acabar. E será o fim da humanidade.
Para fugir do olhar do sol malévolo, eu havia dado de cara com um gavião empalhado que me observava, pousado no canto oposto da sala. Também não éramos íntimos. Abandonei então o desenho e fui buscar um copo d'água na cozinha, com a expectativa de ouvir outras conversas quando retornasse. Eu poderia brincar sozinha no quarto, mas... e se o sol de cobre fosse atrás, levado pelo gavião?
Até chegar à cozinha, novo suplício: eu teria de passar pelas sombras da sala de estar, onde meu irmãos e minha irmã adolescentes assistiam a um filme de terror e comiam pipocas, com os rostos azulados pela luz da TV. Cúmplices de minhas assombrações, os dois não perdiam a oportunidade de se divertir:
— Quer pipoca? Então senta aqui conosco para ver esse filme. É O fantasma da rua Morgue — convidou meu irmãos, em seguida unindo-se à risada aterrorizante que a irmã iniciara um pouco antes. Era Poe na TV, numa adpatação cheia de liberdades, a começar pelo título. Mas a crítica, eu só faria anos depois.
Passei correndo pela TV, com as mãos apoiadas nas têmporas, impedindo tanto a visão do filme como da dupla adolescente. Tomei um pouco d'água e retornei, novamente encobrindo a visão, à sala principal. Entre as duas, havia um corredor algo expressionista, que agora havia triplicado de tamanho. Tropecei no escuro, ouvindo os gritos provenientes da televisão, misturados à conversa dos adultos, que já chegava aos meus ouvidos. O assunto tinha evoluído: enterros. Mais especificamente, falavam sobre enterrados vivos. Pode de novo.
Voltei à mesa de mármore, onde tentei me distrair com um brinquedo batizado de Tijolinhos: pequenos retângulos de madeira, nos quais eram pintados tijolos verdes e vermelhos, portões e telhas. A saída foi começar a construir um castelo — e às vezes, ainda hoje, me vejo envolvida com a mesma brincadeira, que nunca tem fim.
— Contam casos horríveis de cadáveres que são encontrados contorcidos nos caixões — dizia minha mãe, interrompida pela tia:
— É. Às vezes, as tampas chegam a estar marcadas de sangue e arranhões desesperados.
— O ideal seria que cremassem todo o mundo — raciocinava meu pai. E percebeu que o fogo da lareira havia apagado, abrindo bruscamente a porta da sala para buscar mais lenha. Um vento forte estremeceu a sala e derrubou meu castelo, ainda incompleto. Juca se encolheu mais um pouco. E eu desatei a chorar. Chorei alto, aos borbotões. Gritei meu choro, despertando os adultos quanto à minha presença. Calaram-se. Meu pai entrou com a madeira e fechou a porta, perguntando o que tinha havido, enquanto começava a fazer o fogo. Minha mãe então já me abraçava, repetindo a mesma pergunta de todos:
— O que foi?
Expliquei como pude e fui tranqüilizada. Não, eu não morreria. E quando o mundo acabasse? Não, ele não acabaria. Tudo bobagem deles, dizia minha mãe, lançando olhares de reprovação a todos.
— Não dá para falar certas coisas perto de criança. Ainda mais dessa menina, que é tão nervosa — afirmava ela, talvez imaginando que, além de nervosa, eu tivesse problemas auditivos.
Levei ainda um tempo para ser convencida de minha imortalidade, mas acabei dormindo serena, com a mãe sentada ao lado, cantando. Se ela havia garantido, era verdade.
Na manhã seguinte, acordei leve e percebi que o sol brilhava muito lá fora. Os últimos cinco dias tinham sido todos nublados, e a única visão ensolarada fora aquela de cobre, carrancuda sobre a lareira. Corri para a rua, disposta a brincar entre as árvores, quando percebi que minha irmã chorava baixinho, ajoelhada ao chão, sendo consolada pela mãe. O pai entrou no carro, o olhar de algumas toneladas, levando um saco de supermercado com algo que parecia se mexer lá dentro. Arrancou e partiu em direcção à estrada.
— O que foi? — perguntei, torcendo para não ouvir a resposta.
A mãe não disse nada, mas minha irmã contou, soluçando, que o Juca tinha dormido em baixo da roda do carro. Sem perceber, nosso pai havia atropelado o cachorrinho pequinês. E saíra para enterrá-lo.
Laís Chaffe, in Não é difícil compreender os ETs, AGE, 2002, pp. 83-89.