De que serve uma casa ao cão vadio? De que serve a promessa que lhe estendem, as vantagens que lhe oferecem? De que serve a esperança, vazia nas suas mãos vazias? De que serve o prato onde lhe querem dar de comer, o conforto que ignora, o gesto dedicado que recusa? De que serve o jardim com relva aparada e cães de trela que nunca terá para ele qualquer interesse? De que lhe serve companhia, ele que aprendeu o só por companheiro? De que serve a família que lhe emprestam, a posteridade que lhe acenam, ele que sabe não terá nenhuma? De que serve a felicidade de que falam, saciedade e segurança, explicam, ele talhado à forma áspera dos penhascos? De que servem fortuna, glória, aclamação nas tribunas e nos campeonatos, pêlo mais viçoso, dorso mais esbelto, inteligência, claro (jogos de frivolidade), talento, pois (jogos de eternidade). Seu é o grito das ruas sem fim, sua a morada desde sempre abolida, seu o destino de caminhar sem chegada, vizinha morte, tão cedo conhecida, a cada esquina dobrada. Era isto que esperava que lhe dessem (era isto que podia receber). Mas em vez disso dão-lhe uma casa, a promessa em que nunca coube, a esperança que as suas mãos não guardam. E ele segue e repete: cão vadio (segue e obstina: cão vadio). A mulher que o chamava do limiar da porta regressa ao interior da casa e pensa: mal agradecido. E tem razão, embora de outro modo que a razão que conhece. E é verdade, embora de outro modo que a verdade que é sua. Assim ficamos só eu e tu. E choro por ti a lágrima que a dor cegou. Choro por nós a lágrima que não sabemos. Rosto próximo, olhamo-nos nos olhos secos, boca parada na palavra por nascer. Olhamo-nos e seguimos caminho.
Jorge Roque
Broto Sofro
Averno
2008