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Tinha um rafeiro de perna curta (o Farrusco), caçador
exímio. Vivo e esperto. Tão vivo e esperto que irritava a minha avó materna,
mulher quezilenta e envinagrada. Um dia que lhe conseguiu roubar duas chouriças
de dentro de um tacho de barro de uma prateleira alta, sem que até hoje alguém
saiba como conseguiu não partir o tacho que encontraram no chão já, a mulher
teria perdido as estribeiras; deitando mão a uma broca de pedra que o meu avô
usava na pedreira, desferiu o golpe mortal ao cão. E errou, por sorte dele.
Para lhe
proteger a vida, para não ter que se zangar a sério com a mãe, o meu pai pediu
a um amigo que lhe arranjasse dono para o cão. Longe, o mais longe possível. E
o outro arranjou. Em Maria Vinagre a quase trezentos quilómetros (por estrada)
dali. Lá o levou, numa camioneta Krupp, de noite, até ao local onde ia carregar
barris de resina. E os meses passaram, o meu pai resignado, a minha avó
esquecida do caso…
Até ao
dia em que um outro aluno da mesma aldeia subiu ao andar de cima da escola de
condução e interrompeu a aula de código. « Ó Baleizo! desce cá abaixo que tens
ali uma visita!». Aflito, cuidando tratar-se de notícia de tragédia, morte de
familiar ou coisa do género, o meu pai desceu. E ali estava o Farrusco. Magro,
contente de reencontrar o dono. Até hoje ninguém sabe o percurso que fez
durante as semanas que lhe durou a viagem de volta ao dono e a casa. Que pontes
atravessou, que estradas ou carreiros tomou rumo a norte. Como soube que
caminho tomar se a viagem de ida foi às escuras dentro do Camião. Como em toda
Santarém descobriu pelo faro o rasto do dono até à escola de condução.
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