Antologia de textos com cães dentro.

sábado, 3 de março de 2018

O LADRAR DOS CÃES

   Não havia sinal da existência de pessoas na escuridão da noite, nem uma única respiração humana, mas apenas a do vento. Quando nos sentámos, pois a novidade da situação mantinha-nos acordados, ouvíamos de vez em quando raposas a andar sobre as folhas mortas e roçar as ervas húmidas de orvalho perto da tenda e, numa ocasião, um rato-almiscareiro a tentar chegar às batatas e aos melões no barco, mas quando acorremos à margem apenas vimos uma ondulação da água a agitar o disco de uma estrela. Por vezes, ouvíamos a serenata de um pardal a sonhar ou o grito abafado de uma coruja, mas, depois de cada som que a pouca distância quebrava a quietude da noite, de cada crepitar de galhos ou sussurrar das folhas, havia uma pausa súbita e fazia-se sentir um silêncio cada vez mais profundo, como se o intruso soubesse que nenhuma vida tinha o direito de andar por fora a essa hora. Nessa noite, devia haver um incêndio em Lowell, pois vimos o horizonte esbraseado e ouvimos as distantes sinetas de alarme, que pareciam uma ténue melodia metálica que tivesse chegado àqueles bosques. Mas o som mais constante e memorável de uma noite de Verão, que ouvimos em todas as noites subsequentes, embora nunca tão continuamente nem tão bem como agora, era o ladrar dos cães domésticos, desde o ladrar mais forte e rouco até à palpitação aérea mais ténue sob os beirais do céu, desde o mastim paciente, mas ansioso, até ao terriê tímido e alerta, ao princípio alto e brusco, e depois baixo e lento, que só se podia imitar num sussurro: au-au-au-au-a-a-u-u. Mesmo numa região distante e deserta como esta, havia uma profusão de sons nocturnos, mais fascinantes do que qualquer música. Ouvi a voz de um cão, imediatamente antes da aurora, quando as estrelas brilhavam, vinda de trás dos bosques e do rio, distante no horizonte, tão suave e melodiosa que mais parecia emitida por um instrumento musical. O ladrar de um cão em perseguição de uma raposa ou de outro animal no horizonte pode ter sugerido inicialmente as notas da corneta de caça que veio substituir e aliviar os pulmões do animal. Esta corneta natural ressoou durante muito tempo no mundo antigo antes de o instrumento ter sido inventado. Os próprios cães que, nestas noites, ladram tristemente à lua nos pátios das quintas incutem mais heroísmo nos nossos peitos do que todas as exortações civis ou sermões guerreiros da época. «Preferia ser cão e ladrar à lua» do que muitos romanos que conheço. A noite está igualmente em dívida para com o clarim do galo, com uma esperança insone desde o pôr-do-sol, anunciando prematuramente  madrugada. Todos estes sons, o cantar dos galos, o ladrar dos cães e o zumbido dos insectos ao meio-dia são indícios da saúde da natureza. É essa a infalível beleza e precisão da linguagem, a obra de arte mais perfeita do mundo, retocada por um cinzel milenar.

Henry David Thoreau, in Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack, trad. Luís Leitão, Antígona, Janeiro de 2018, pp. 68-69.

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