Antologia de textos com cães dentro.

sábado, 28 de julho de 2012

SEXTA, SÁBADO

Agora os rapazes com lanternas correm
pelo meio da rua, analisam-nos o rosto à
luz ofuscante; as feridas abrem
ligeiramente, uma bola cinzenta cai da janela
transida. Há poeira, glóbulos de lama no escuro patamar.

**

A cidade, músculo avariado. Pastores conduzem
mulheres, carrinhos e cestos de groselhas. Crianças tenras
volteiam na praça. Estou esfomeado e eles estão imóveis
(multiplicai-vos,
façam de mim súbito vosso).

**

Despreocupado, recostado na
rede. Cemitério judeu. Habitantes
do outeiro: cão, vaca e toupeira. Loiça (fonte de
alegria). A estrela conduz os rebanhos um a um.


Marcin Sendecki, in Parcelas

sábado, 14 de julho de 2012

D. MARIA MANUELA, SEU MARIDO E SEU CÃES

sempre a vi soterrada
em malhas de lã à volta do pescoço
óculos de lentes pesadas
com olhos de horizontes distorcidos
uma vez experimentei-os aqueles escuros numa praia
e tudo me pareceu metido num filme
mudo a sépia com as pessoas
à velocidade da manivela
só mais tarde soube que (ela)
estava com a sombra
cada vez mais próxima. agora

tece tapetes de arraiolos
a um dedo de distância dos olhos
as mãos trabalham com a destreza
de quem pensa na vida que levou
faz viagens teve cinco filhos tem um marido
cheio de silêncios e a companhia
de um cão velho e uma cadela que substituiu
um outro rafeiro que morreu
baba-se com os netos mas chora muito
com os ataques epilépticos da cadela
por pouco era feliz


Fernando Machado Silva, in Primeira Viagem

A CASA O CÃO A CAMA OS COPOS

perdoa-me o enrolar da língua
mas a solidão tem destas coisas
e disparates seguem-se
uns aos outros
sobre o corpo abandonado
e a canção diz
é impossível ser feliz sozinho
e com o meu treino engano-te
preparando uma despedida
fácil. podes sair, levar
as tuas coisas, eu e o nosso cão
resolvemos tudo pelos cantos da casa
revelando-nos a nossa verdadeira cara
um ao outro e voltando
a escondê-la quando regressares


Fernando Machado Silva, in Primeira Viagem

terça-feira, 10 de julho de 2012

O CÃO QUE ME TINHA

Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber que ia.
Tomava as minhas feridas,
a tristeza que eu pudesse ter
e sofria dela como eu nem sofria.
Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
Punha a coleira ao pescoço
e levava-me a passear
como se eu fosse o dono.
E à noite dormia no chão
ou então fingia. Eu acordava
com um servo aos pés da cama,
armava-me em amo
e era ele que me tinha.
Exímio no silêncio
e no uso das armas
com que me defendia
de todos e também de mim:
a linha veloz do pêlo luzidio,
o frémito da língua,
o focinho em arco para a escuta.
Era um cão que me tinha
e uma tarde de verão
atirei-lhe um osso gostoso
antes de o deixar no canil.


Rosa Alice Branco, in O Gado do Senhor

sexta-feira, 6 de julho de 2012

VELHO CACHORRO

O mundo estava na infância.

O vento desenrolava
sua paciente fábula.

O vento velho cachorro
lambia o quadril do sono.

Pé de pilão nossa sombra
junto à sombra da palavra.

O mundo não é candeia
nem vaso de flor a alma.


Carlos Nejar, Um País O Coração

CLARIDADE

O barulho de existir:
um cão
dentro de mim.

Atravesso
como a um pátio
o barulho de existir.


Carlos Nejar, Árvore do Mundo

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