Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 15 de abril de 2007

CARLOTA, ABRIL DE 2000 - ABRIL DE 2007




Causa da morte: envenenamento.


quinta-feira, 12 de abril de 2007

DOM RAFEIRO

O seu latido faz o espaço, ainda, mais largo,
Dá mais distância e fundo a toda esta amplidão.
Solitário, é, da noite e do campo, em letargo,
O feroz e pachorrento guardião.

Os seus olhos, que têm canduras de alvorada,
Têm, às vezes, também, o fulgurar do raio:
- Providência da rês desirmanada,
Lutador fero, heróico e sem desmaio.

Da boca enorme, a baba cristalina,
Pende-lhe, quando sonolento espera,
No escalvado cabeço da colina,
O sol, macio e bom, da Primavera.

Mas nas noites de Inverno desalmado:
- Poços enormes, negros e sem fundo, -
O seu cavo ladrar, no ermo resignado,
É a única voz viva deste Mundo.

Agora, o sol lhe doira a felpa do espinhaço.
O rebanho repasta, plácido, em sossego.
E, aninhado entre as mãos, em ternuras de abraço,
Aconchega-se, débil, um borrego.

Francisco Bugalho
Poesia
1961

quarta-feira, 11 de abril de 2007

CALENDÁRIO RURAL

ABRIL
O «Navarro» é um belo cão de caça, mas muito guloso. Esqueceram-se de o açaimar e entrou na capoeira onde estava um rebanho de pintos e a galinha choca, comendo logo três, porque julgava que faziam parte de um bando de perdigotos. O dono, caçador entusiasta, perdoou-lhe. Mas a mulher ficou desgostosa e jurou castigar o «Navarro». Assim ela o pilhe.
Azinhal Abelho
Os da Orada
1964
Oferta do Rui Almeida.

terça-feira, 10 de abril de 2007

HOMEM COM CÃO

Will Ryman, Man with Dog, 2005.

Walking the dog

Mal me levanto
tomo o café-da-manhã
e penso no cão,
corpo de feltro
largado na estrada
Mal me levanto
e já me sinto
ensanduichado
esborrachado
esprimido
e reduzido
ao olhar do cão fugindo
atravessando a rua
com direito
de cidade
como os de Jude Stefan
- ou seria embalado
liofilizado
como no réquiem de Ruy Belo?
Com os sentimentos atolados
em coisas imediatas
deixo o cão
seja de um
ou de outro
As coisas imediatas
(em conflito permanente)
me levam para o carro

17/09/2003

Heitor Ferraz
Inimigo Rumor, número 15
2º semestre 2003

Oferta do Rui Almeida.

O SONHO E OS CÃES

para José Amaro Dionísio

Entredentes o sonho
apodrece-o, dos cães,
a baba que supuram.

Dizendo de outro modo,
por um augúrio insistes,
procuras outra fábula,
tu sabes lá se mentem
os astros dessorados
as cartas de tarot
a sina ciganada
as folhinhas de chá
nas chávenas de estilo

Desfocam-se contornos,
ninguém te vê por perto,
não tens perdão, rapaz,
não, não há-de ser nada,
segredos já só mesmo
os que pela mais intacta
deslocação da mágoa
transitem entre uma
e outra lâmina.

Ninguém te vê, dispara,
vá, dispara, rapaz,
não, não há-de ser nada,
nada a fazer, de resto,
a voz assim sangrada,
os cães ainda à espreita.

Raul Malaquias Marques
Traduções da Fala
&etc, 1995

Oferta do
Rui Almeida.

PRADO DE MADRID

*

Goya! – o de la quinta del sordo.
Amanhã é dos loucos de hoje.
Pela quinta vez volto à tua sala
e ouço o anedótico sobre ti.
Anedótico por anedótico,
deixa que te diga.
Para que aquele cão está olhando?
Tu vias, quando pintavas solitário. Pois lá
deixaste o grande imperador, após
tantos massacres, e a caveira da morte,
em cima a criança. E se olhar-se melhor,
à saída, a maja também está
e disfarça, e dança nos três. Tudo
semifundido com o cão. E é esta a explicação
dentro dos olhos do cão que contemplam.
Tudo passa, inexoravelmente
tudo passa, e nenhum poder
pode subsistir à humildade de um cão que contempla.

Agora podem continuar os zumbidos que entornam sobre ti.


José Santiago Naud
Conhecimento a Oeste
Moraes Editores, 1974

Oferta do Rui Almeida.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

UMA TARDE de Agosto. Nuvens altas e secas espalham o calor que sobe das pedras, que cerca as árvores, que trepa pelas paredes da casa e reverbera no coro monótono das cigarras.
A sombra agacha-se; a água parece lodo. O cão sofre, com a língua de fora e o olhar mortiço. Desespera. Está velho, acabado. Pensa que poderá ser o sofrimento do último verão - isso não o consola, nem o perturba.
Pensa que há um Deus que vigia a inclemência do verão e o sofrimento dos cães; agora, deseja o sono, que lhe resiste; cresce a modorra, o estupor do desamparo.

José Alberto Oliveira
Bestiário
2004

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Philip Pearlstein, Model with HMN Dog and Renaissance Bambino, 2006.

O BAIRRO

7.

O cão, aos pinotes
na cozinha onde as latas de chá
cheiram a lixívia,
rosna aos projectos de demolição.

Inútil estabelecer rimas ao «gosto popular».
A subtileza verbal, os jogos de palavras
e o ritmo da poesia feridos
irremediavelmente
no dia em que os recém-nascidos
começaram a aparecer nos contentores.

Jorge Gomes Miranda
Postos de Escuta
2003

O CÃO

Diz-me o meu jardineiro: O cão
É robusto e esperto e foi comprado
Pra guardar hortas. Mas eles
Fizeram dele o amigo do homem. Pra que é
Que lhe dão de comer?

Bertolt Brecht
Tradução de Paulo Quintela
Poemas e Canções
1975

domingo, 1 de abril de 2007


Frank Tenney Johnson, Men and Dog.

O ESTRANGEIRO (excerto)

Ao subir, na escada escura, choquei com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Ia com o cão. Há oito anos que não se largam. O rafeiro tem uma doença de pele que lhe faz cair todo o pêlo e o que o cobre de manchas e de crostas. À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para a frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se. Duas vezes por dia, às onze horas e às seis horas, o velho leva o cão a passear. Fazem há oito anos o mesmo itinerário. Seguem ao longo da Rua de Lyon, o cão a puxar pelo homem até o fazer tropeçar. Põe-se então a bater no bicho e a insultá-lo. O cão roja-se cheio de medo e deixa-se arrastar. Nesse momento é o velho que tem de puxar. Quando o cão se esquece, põe-se outra vez a puxar e é outra vez espancado e insultado. Ficam então os dois no passeio e olham-se, o cão com terror, o homem com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão quer fazer as suas necessidades, o velho não lhe dá tempo e arrasta-o. Se por caso o cão «faz» no quarto, também lhe bate. Isto dura há oito anos. O Celeste diz que «é uma pena», mas no fundo ninguém quer saber. Quando encontrei o Salamano nas escadas ia a insultar o cão: «Bandido! Cão nojento!» Eu disse: «Boas-noites», mas o velho continuava a insultá-lo. Perguntei-lhe o que é que o cão tinha feito. Não me respondeu. Dizia apenas: «Bandido! Cão Nojento!» Percebi que debruçado sobre o animal, estava a arranjar qualquer coisa na coleira. Falei mais alto. Então, sem se voltar para trás, respondeu-me com uma espécie de raiva reprimida: «Está sempre aqui!» Depois foi-se embora puxando pelo cão, que gania e se deixava arrastar.
Albert Camus
O Estrangeiro
Oferta do Ricardo Jorge.

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