Os cães, tantos. Sem cuidarem
da torpeza
lambem as nossas mãos.
Misteriosa religião a deles.
O rosto do seu Deus não temem
e contemplam lado a lado.
Nem a Moisés tal foi consentido.
António Osório
A Ignorância da Morte
1978
Antologia de textos com cães dentro.
sábado, 31 de março de 2007
quarta-feira, 28 de março de 2007
CONTO
Vai o menino só na estrada grande,
Grande e medonha entre pinhais sombrios,
Entre uivos ruivos, roucos e bravios
Arranhando o silêncio que se expande...
A mãe dissera-lhe: -- «O menino, ande
«Longe das selvas, dos fundões, dos rios...»
E avós, irmãos, amigos, primos, tios:
-- «Menino, vá por onde a gente o mande!»
Mas o menino foi desobediente.
E andou por vias ínvias ou sem gente,
Pela mão de enigmáticos destinos.
Saltar-lhe-ão lobos vis e cães de el-rei...
-- Foi pondo o ouvido em terra, que escutei
Lobos uivar e soluçar meninos.
José Régio
Biografia
1929
Grande e medonha entre pinhais sombrios,
Entre uivos ruivos, roucos e bravios
Arranhando o silêncio que se expande...
A mãe dissera-lhe: -- «O menino, ande
«Longe das selvas, dos fundões, dos rios...»
E avós, irmãos, amigos, primos, tios:
-- «Menino, vá por onde a gente o mande!»
Mas o menino foi desobediente.
E andou por vias ínvias ou sem gente,
Pela mão de enigmáticos destinos.
Saltar-lhe-ão lobos vis e cães de el-rei...
-- Foi pondo o ouvido em terra, que escutei
Lobos uivar e soluçar meninos.
José Régio
Biografia
1929
quarta-feira, 21 de março de 2007
domingo, 18 de março de 2007
CARGO CULT
Não vivo disto
tenho o tempo contado
para escrever um poema
um poema novo que não seja surdo
às minhas preces
há horas felizes
e fico à espera
não serei eu a começar
- toca a comer
ou porque ardeu tudo
ou porque vi coisas
e que as pequenas formigas argentinas
são indestrutíveis, pequenos pontos a bulir
mortos diariamente
para voltarem iguais, concentrados
no dia seguinte
a luta não nos pode salvar da fome
ou dos organismos especializados
eis o que disse o sineiro
não é para gostares e ainda não viste nada
à distância de um barulho
em terra incerta
dois minutos abaixo de cão
assim me cubro
enquanto o sono de todos
se esgota nos quartos de dormir
e agora não digo mais nada
como miséria.
João Almeida
A Formiga Argentina
2005
tenho o tempo contado
para escrever um poema
um poema novo que não seja surdo
às minhas preces
há horas felizes
e fico à espera
não serei eu a começar
- toca a comer
ou porque ardeu tudo
ou porque vi coisas
e que as pequenas formigas argentinas
são indestrutíveis, pequenos pontos a bulir
mortos diariamente
para voltarem iguais, concentrados
no dia seguinte
a luta não nos pode salvar da fome
ou dos organismos especializados
eis o que disse o sineiro
não é para gostares e ainda não viste nada
à distância de um barulho
em terra incerta
dois minutos abaixo de cão
assim me cubro
enquanto o sono de todos
se esgota nos quartos de dormir
e agora não digo mais nada
como miséria.
João Almeida
A Formiga Argentina
2005
sábado, 17 de março de 2007
os cães cara a cara, ou o cão no espelho
o pêlo ereto do lombo até o rabo
o focinho frio aquoso o focinho
sem ser parte. as presas de fora
o ronco do fundo dos peitos o ronco
mais forte que a força do cão, o custeio da imagem
a palmilha sob a pata.
a acareação dos cães, o mesmo que a fala de um só
a verdade do cão o pensar esquemático o semafórico o zelo seu
pelo diapositivo a cores, seta / direção / apito
- a sutura, o devir nacional
o dever cumprido
Milton Torres
No Fim das Terras
2005
o pêlo ereto do lombo até o rabo
o focinho frio aquoso o focinho
sem ser parte. as presas de fora
o ronco do fundo dos peitos o ronco
mais forte que a força do cão, o custeio da imagem
a palmilha sob a pata.
a acareação dos cães, o mesmo que a fala de um só
a verdade do cão o pensar esquemático o semafórico o zelo seu
pelo diapositivo a cores, seta / direção / apito
- a sutura, o devir nacional
o dever cumprido
Milton Torres
No Fim das Terras
2005
sexta-feira, 16 de março de 2007
quinta-feira, 15 de março de 2007
OUÇO FALAR
Ouço falar da minha vocação
mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão. A música
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
Eugénio de Andrade
O Sal da Língua
1995
Oferecido por Inês Lourenço.
mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão. A música
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
Eugénio de Andrade
O Sal da Língua
1995
Oferecido por Inês Lourenço.
EM PLENA MONTANHA:
Um esquiador e um bêbedo meteram-se pela montanha acima e foram surpreendidos por uma forte tempestade. Já quase desesperados, vêem ao longe um São Bernardo com a sua barriquinha de whisky pendurada na coleira. Grita, aliviado, o esquiador : Lá vem o melhor amigo do homem! Clama, exultante, o bêbado: E traz um cão!
Oferecido por Inês Lourenço.
Oferecido por Inês Lourenço.
terça-feira, 13 de março de 2007
TERRESTRE
Depois da morte do cão,
os pombos passaram a ser
os seus animais de companhia,
porque não careciam de mãos humanas
nem cuidados de dono. Habitavam
qualquer vão de telha ou côncavo de
ramo. Trelas e coleiras eram
agora uma passada invenção
terrestre, jamais possível
entre um humano e uma ave.
Inês Lourenço
A Enganosa Respiração da Manhã
2002
os pombos passaram a ser
os seus animais de companhia,
porque não careciam de mãos humanas
nem cuidados de dono. Habitavam
qualquer vão de telha ou côncavo de
ramo. Trelas e coleiras eram
agora uma passada invenção
terrestre, jamais possível
entre um humano e uma ave.
Inês Lourenço
A Enganosa Respiração da Manhã
2002
segunda-feira, 12 de março de 2007
XLII
Aproxima-te, põe o ouvido na minha boca,
vou dizer-te um segredo,
está um homem com a noite deitado
nas areias, separado doutro homem
por um grito, ninguém o ouve,
o sol há tanto tempo apodrecido.
Não sei se espera a manhã
para partir ou vai ficar
com os cardos nas dunas, os olhos cheios
de ignorância e de bondade,
exposto
assim à calúnia, à ventania.
Como se fora um cão, menos ainda.
Eugénio de Andrade
Branco no Branco
1984
vou dizer-te um segredo,
está um homem com a noite deitado
nas areias, separado doutro homem
por um grito, ninguém o ouve,
o sol há tanto tempo apodrecido.
Não sei se espera a manhã
para partir ou vai ficar
com os cardos nas dunas, os olhos cheios
de ignorância e de bondade,
exposto
assim à calúnia, à ventania.
Como se fora um cão, menos ainda.
Eugénio de Andrade
Branco no Branco
1984
CONSTELAÇÕES DO VERÃO
Um corpo
estendido
nu
na iminência de ser música
diz o que penso
O fogo
súbita convulsão da água
sobe
pelas pernas
penetra os lábios
vacilantes do verão
exausto
e branco
porque entardecia
O olhar
cai
errante
cão
lambendo
a chama oscilante dos dedos
escassa língua
sobre flancos desertos
as palavras
tão leves que nem o ar feriam
nem sequer o ar
As palavras
que se levantam para recusar
(quando aprenderão a morder?)
são a nossa herança
E o fogo
Eugénio de Andrade
Véspera da Água
1973
estendido
nu
na iminência de ser música
diz o que penso
O fogo
súbita convulsão da água
sobe
pelas pernas
penetra os lábios
vacilantes do verão
exausto
e branco
porque entardecia
O olhar
cai
errante
cão
lambendo
a chama oscilante dos dedos
escassa língua
sobre flancos desertos
as palavras
tão leves que nem o ar feriam
nem sequer o ar
As palavras
que se levantam para recusar
(quando aprenderão a morder?)
são a nossa herança
E o fogo
Eugénio de Andrade
Véspera da Água
1973
domingo, 11 de março de 2007
COMEMORAR O CÃO
preciso céu azul-seco
abaixo dele
o cão raivoso
amarrado ao poste
da cidade pequena
treme e baba:
grande frio ao sol
a memória morde
quem comemora
desfigura o quem, o que
alheio
aos prados e às bananeiras
espera nada
sofre patibular
petrificado na cena
que me petrifica
Paula Glenadel
Inimigo Rumor, número 15
2º semestre 2003
Oferecido por Rui Almeida.
abaixo dele
o cão raivoso
amarrado ao poste
da cidade pequena
treme e baba:
grande frio ao sol
a memória morde
quem comemora
desfigura o quem, o que
alheio
aos prados e às bananeiras
espera nada
sofre patibular
petrificado na cena
que me petrifica
Paula Glenadel
Inimigo Rumor, número 15
2º semestre 2003
Oferecido por Rui Almeida.
BANDO
Homenagem a Ruy Belo
Aperto a renda da cortina
e o vestido do dia.
Minhas unhas estão compridas.
Espero os cães que remexem o lixo.
Recolher justamente o que recusei,
ordenar os restos e a sombra da recusa.
Esses cães que mastigam a polpa da noite,
a fibra de uma verdura vencida,
a embalagem de um rosto.
Esses cães vadios na coleira do instinto.
Sem a censura das pálpebras,
sem nomes que os façam ridículos.
Não perdendo tempo
caçando ratos nas árvores
ou o tempo no corpo.
Hoje os sinto novamente.
Aviso: é a última vez.
Limpo a zoeira da visita, pago a conta,
Encaderno as sobras que foram minhas.
E a raiva só pede que voltem.
Voltem
e me aceitem em seu bando.
Fabrício Carpinejar
Inimigo Rumor, número 15
2º semestre 2003
Oferecido por Rui Almeida.
sábado, 10 de março de 2007
O CÃO SÁBIO
Certo dia um cão sábio passou por um grupo de gatos. E vendo que os gatos pareciam preocupados falando entre si sem dar pela sua presença, decidiu parar para escutar o que diziam.
Levantou-se um gato, o maior, grave e sisudo, que dirigindo-se aos outros disse: Meus irmãos, rezai, porque se rezardes muitas vezes por certo choverão ratazanas.
Ao escutar estas palavras o cão riu-se com os seus botões e seguiu caminho dizendo: Gatos cegos e insensatos. Por acaso não está escrito, e não é dado adquirido que o que chove quando rezamos não são ratazanas, mas ossos?
Khalil Gibran
Versão de Ana Leal
O Louco
1997
sexta-feira, 9 de março de 2007
REQUIEM POR UM CÃO
Cão que matinalmente farejavas a calçada
as ervas os calhaus os seixos e os paralelipípedos
os restos de comida os restos de manhã
a chuva antes caída e convertida numa como que auréola da terra
cão que isso farejavas cão que nada disso já farejas
Foi um segundo súbito e ficaste ensanduichado
esborrachado comprimido e reduzido
debaixo do rodado imperturbável do pesado camião
Que tinhas que não tens diz-mo ou ladra-mo
ou utiliza então qualquer moderno meio de comunicação
diz-me lá cão que faísca fugiu do teu olhar
que falta nesse corpo afinal o mesmo corpo
só que embalado ou liofilizado?
Eras vivo e morreste nada mais teus donos
se é que os tinhas sempre que de ti falavam
falavam no presente falam no passado agora
Mudou alguma coisa de um momento para o outro
coisa sem importância de maior para quem passa
indiferente até ao halo da manhã de pensamento posto
em coisas práticas em coisas próximas
Cão que morreste tão caninamente
cão que morreste e me fazes pensar parar até
que o polícia me diz que siga em frente
Que se passou então? Um simples cão que era e já não é
Ruy Belo
Transporte no Tempo
1973
as ervas os calhaus os seixos e os paralelipípedos
os restos de comida os restos de manhã
a chuva antes caída e convertida numa como que auréola da terra
cão que isso farejavas cão que nada disso já farejas
Foi um segundo súbito e ficaste ensanduichado
esborrachado comprimido e reduzido
debaixo do rodado imperturbável do pesado camião
Que tinhas que não tens diz-mo ou ladra-mo
ou utiliza então qualquer moderno meio de comunicação
diz-me lá cão que faísca fugiu do teu olhar
que falta nesse corpo afinal o mesmo corpo
só que embalado ou liofilizado?
Eras vivo e morreste nada mais teus donos
se é que os tinhas sempre que de ti falavam
falavam no presente falam no passado agora
Mudou alguma coisa de um momento para o outro
coisa sem importância de maior para quem passa
indiferente até ao halo da manhã de pensamento posto
em coisas práticas em coisas próximas
Cão que morreste tão caninamente
cão que morreste e me fazes pensar parar até
que o polícia me diz que siga em frente
Que se passou então? Um simples cão que era e já não é
Ruy Belo
Transporte no Tempo
1973
quarta-feira, 7 de março de 2007
QUADRO
Indeciso ressurge do poente
Aureolado de espanto e de desastres
Em busca do seu corpo dividido
Todas as sombras se erguem das esquinas
E o seguem devagar nas ruas verdes
São como cães no rastro dos seus passos
Aberta a porta o quarto grave surge
E os espaços oscilam nas janelas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
No Tempo Dividido
1954
Aureolado de espanto e de desastres
Em busca do seu corpo dividido
Todas as sombras se erguem das esquinas
E o seguem devagar nas ruas verdes
São como cães no rastro dos seus passos
Aberta a porta o quarto grave surge
E os espaços oscilam nas janelas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
No Tempo Dividido
1954
terça-feira, 6 de março de 2007
MOONLIGHT SERENADE
E contudo a ordem do mundo
nem é um desejo do fundo
do coração mas
tão só o reclamado
entre o cuidado e cuidado
numa canção
sobre os dias que
passam sobre os rios que correm
sobre as montanhas que estão
sobre mim e os cães que à lua ladramos
sempre da mesma maneira e tudo
por causa do vento
da inquietação
Carlos Leite
O Desflashar dos Espaços
Black Sun, 1987
Nota: Poema oferecido por Rui Almeida.
nem é um desejo do fundo
do coração mas
tão só o reclamado
entre o cuidado e cuidado
numa canção
sobre os dias que
passam sobre os rios que correm
sobre as montanhas que estão
sobre mim e os cães que à lua ladramos
sempre da mesma maneira e tudo
por causa do vento
da inquietação
Carlos Leite
O Desflashar dos Espaços
Black Sun, 1987
Nota: Poema oferecido por Rui Almeida.
segunda-feira, 5 de março de 2007
domingo, 4 de março de 2007
AMAR UM CÃO (excerto)
_____ houve uma breve hesitação da parte de quem transportava o recém-nascido _____ o meu cão Jade, há muito tempo; muito, e com grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mãe visível,
num berço nem celeste,
nem terrestre. No lugar que toda a planta acolhe, e que o entregara ao medronheiro,
sentia sobre si uma incidência animal alada, que nem era verdadeiramente pássaro,
nem verdadeiramente quadrúpede.
Era um fio de voz soando à altura do corpo musical que compunha a mata, um choro que coincidia com a convulsão das primeiras gotas de chuva; um sentimento ténue envolvia a cabeça emergindo do verde, e as pequeninas patas, saídas de um pano de baptista, não comoviam a planta lenhosa,
já habituada a palpitações e folhas.
mas o ritmo novo que, pouco a pouco, não se identificava com a chuva, e tornava vermelho de tempo activo a atmosfera, fez erguer o medronheiro sobre si mesmo
«que ser tão frágil mais alto do que eu».
Se o ar não tivesse uma densidade leve, teria quebrado Jade. Jade, que acabara de nascer sobre as bagas purpúreas dos medronhos,
e o ruído dos ramos partidos, já pensava. Um pensamento de leite subia nos sítios pedregosos, fora do local da casa, e da cerca com cerros e penhascos. Ele trazia nos olhos um instrumento azul para medir o diâmetro do sol, e dos astros; lia-se neles uma linguagem que só mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca:
«o meu Pai não existe fora da descrição do Sol; caminho através da murta, do aderno, a aroeira, e avistei esta serra em que a memória vê primeiro o porto nascer; mal nasci, situei-me, em vida interior, em face do mar; ergo para a minha dona os meus olhos frágeis, opondo-me a uma adversária que, de certeza, me ama: faço-lhe pedidos
luta comigo;
dá-me a sensação de ter saído vencido, mas com rebeldia.»
Maria Gabriela Llansol
Amar um Cão
1990
sábado, 3 de março de 2007
sexta-feira, 2 de março de 2007
TEMPO MORTO
Jogávamos pueris jogos de sexo, Xila,
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.
Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.
Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.
Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti
e as nossas mãos não se estenderam
mais.
Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.
A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.
Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.
Foi inconsequente
e - como já se disse
- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.
Rui Knopfli
O País dos Outros
1959
corríamos entre girassóis,
morávamos numa cabana oculta na barreira.
Na lembrança, um cão malhado ladra
entre os arbustos.
Éramos tão crianças!, a vida nem chegava
a ser mistério
e não havia problemas de pão a resolver...
Apesar disso tu eras a mulher,
tu eras a Amante (mais subtil
e experiente de quantas tenho conhecido,
porque eras o grande livro da Inocência).
Eu era Tarzan dos Macacos,
tu, Jane morena.
Havia a inveja de Carlos e o ciúme de Sofia,
mas isso tornava-nos maiores ainda.
Amávamos na lonjura das tardes,
enquanto Foxie dormitava a um canto da cabana.
Sobre folhas verdes de acácia
tu não eras segredo
e, em mim, não morava o mistério.
Eras um duende de tranças pretas e olhos verdes,
eu era um potro selvagem.
Éramos sexo, lábios, mãos, epidermes
sem impureza.
Partiste ao anoitecer num navio amarelo,
levando juras eternas.
Quando voltaste
tinhas crescido e o teu corpo
esboçava outras formas.
Tomaras meneios senhoris,
falavas em pecado e em criancices reprováveis
com ar judicioso.
Eras a mentira, Xila!
A muralha do Impuro interpusera-se
entre mim e ti
e as nossas mãos não se estenderam
mais.
Eu,
fiquei na vida de calção.
E, certa manhã sem sol,
Foxie morreu atropelado.
A minha infância é um cão malhado.
Chama-se Foxie e ladra aos passantes.
Andou por aí
solto nos matos,
dormiu nos bancos ao relento,
olhou as estrelas, sem mistério
e sem as compreender.
Seu olhar langue e sem mágoa
aceitou as carícias e os pontapés
que lhe quiseram dar.
Sabia os recantos da rua
e os segredos do baldio defronte.
Conheceu noites de cio
e dias de vagabundagem.
Foi inconsequente
e - como já se disse
- morreu atropelado
numa escura manhã sem data.
Rui Knopfli
O País dos Outros
1959
O CÃO DA ANGÚSTIA
Tem eriçado e ralo o pêlo
como se de animal morto,
dos beiços gomosa baba lhe escorre
em grandes fios de reluzente espuma.
No olhar sangrento e fosco dura-lhe
uma mágoa antiga e resignada.
Mágoa, já não o sonho,
lacerado à sanha das alcateias.
Caminha trôpego e hesitante
sob o triângulo agoniado do focinho,
numa dança lenta e grotesca.
Todo o tempo lhe pertence
e não lhe sobra nenhum, cão
insonoro e furtivo, cão de sombra,
cão tardio e nocturno, ó cão
da nossa esperança lazarenta,
cão durável, cão indestrutível.
Rui Knopfli
Mangas Verdes Com Sal
1969
como se de animal morto,
dos beiços gomosa baba lhe escorre
em grandes fios de reluzente espuma.
No olhar sangrento e fosco dura-lhe
uma mágoa antiga e resignada.
Mágoa, já não o sonho,
lacerado à sanha das alcateias.
Caminha trôpego e hesitante
sob o triângulo agoniado do focinho,
numa dança lenta e grotesca.
Todo o tempo lhe pertence
e não lhe sobra nenhum, cão
insonoro e furtivo, cão de sombra,
cão tardio e nocturno, ó cão
da nossa esperança lazarenta,
cão durável, cão indestrutível.
Rui Knopfli
Mangas Verdes Com Sal
1969
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