Antologia de textos com cães dentro.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

CÃO CÉRBERO

antolhos. cão cérbero guardião das portas do inferno. estrangulá-lo. hera. belamente leão de neméia. esmagar os pés de bronze do antropóide. acomodá-lo nas entranhas dilaceradas da corça. voar... dentro da cabeça da égua alada. um destino no bico da ave antropófaga. as larvas mentais. do caos os miolos da sombra. sugar o monstro antropocêntrico dum poeta. mas o touro lança a chama violeta pelas narinas num umbigo. lírico.

Adriana Zapparoli
Antologia de Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milénio

INSÓNIA

Madrid é uma cidade de mais de um milhar de cadáveres (segundo as últimas estatísticas).
Às vezes na noite dou voltas e soergo-me neste buraco em que há quarenta e cinco anos apodreço,
e passo longas horas ouvindo gemer o furacão, ou ladrar os cães, ou fluir brandamente o luar.
E passo longas horas gemendo como o furacão, ladrando como o cão enfurecido, fluindo como o leite do úbere quente de uma enorme vaca amarela.
E passo longas horas perguntando a Deus, perguntando-lhe por que apodrece lentamente minha alma,
porquê apodrecem mais de um milhão de cadáveres nesta cidade de Madrid,
porquê milhões de cadáveres apodrecem no mundo.
Diz-me: que horto queres adubar com a nossa podridão?
Receias que sequem para ti as grandes roseiras do dia,
as tristes açucenas letais de tuas noites?

Dâmaso Alonso
in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
Tradução de José Bento
Assírio & Alvim, 1985


Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

COMO ME TRANSFORMEI EM CÃO

É ainda assim completamente insuportável!
Estou rabugento como tudo.
A minha rabugice não é conforme poderia ser a vossa:
apanharia qual um cão o rosto de testa lisa
da lua
e cobrindo-a de latidos.

Deve ser dos nervos…
Vou sair,
dar uma volta.
Mas na rua ninguém consegue acalmar-me.
Uma mulher grita-me qualquer coisa a propósito de uma boa tarde.
Há que responder:
eu conheço-a.
Quero fazê-lo,
mas sinto
que é impossível à maneira dos homens.

Que escândalo!
Estarei a dormir?
Apalpo-me:
sou tal como era,
o rosto a que estou habituado.
Toco no lábio,
por baixo desponta
um canino.

Escondo rapidamente a cara, como para me assoar,
corri para casa dobrando o passo.
Contorno prudente a esquadra mas de repente um grito ensurdecedor:
«Ó da guarda!
Ele tem uma cauda!»

Passei a mão e fiquei hirto!
Isto era mais claro
que todos os caninos,
na minha pressa furiosa não tinha reparado
que sob o casaco
uma enorme cauda tinha estendido o seu leque
e abanava atrás de mim,
uma enorme cauda de cão.

Que irá acontecer?
Um pôs-se a berrar, amotinando a multidão,
ao segundo juntou-se um terceiro, depois um quarto.
Derrubaram uma pobre velha
que benzendo-se gritou qualquer coisa a propósito do diabo.
E quando, a cara eriçada pelas vassouras de enormes bigodes
a multidão se aproximou,
imensa,
maldosa,
eu pus-me a quatro patas
e ladrei:
Au! Au! Au!

Vladimir Maiakovski, in "33 Poesias" quasi, 2008
trad. Adolfo Luxúria Canibal

Via O Café dos Loucos

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Insónia

O homem vigia.
Dentro dele, estumados,
uivam os cães da memória.
Aquela noite, o luar
e o vento no cipó-prata e ele,
o medo a cavalo nele,
ele a cavalo em fuga
das folhas do cipó-prata.
A mãe no fogão cantando,
os zangões, a poeira, o ar anímico.
Ladra seu sonho insone,
em saudade, vinagre e doçura.

Adélia Prado
Bagagem
1976

Oferecido por Rui Almeida.

A VIDA É UMA FADA

há quem tenha
uma cadela
eu não tenho
uma gata.
a cadela
leva-me lá fora
a gata
anda lá fora.
a cadela
anda-se com ela.
por isso prefiro
não ter uma gata
a ter uma cadela.

embora na desgraça
esta gata é de raça.
se eu pudesse tinha-a
mas não pára em casa.
e se a tivesse passava
a vida como quem tem
uma cadela cinderela:
a gata, que é dela?
não era bom para mim
e era mau para ela.

antes da meia noite
já está com a cadela.
chamam-lhe borralheira
porque nunca mantém
em segredo a fada.
os cavalos são mesmo ratos
a varinha não é de marca
e a carruagem é uma abóbora.
apesar de tudo é uma gata
fala francês com a cadela
e não toca piano
mas escreve à máquina.

ora porque me inquieta
a gata que não é minha?
é que não quero saber da cadela da vizinha!
a borralheira, essa
comunista na miséria
comodista na fartura
é muito meiga e neutra.
à noite pousa a pata
no meu ombro e ladra
o estupor da gata.

Joaquim Castro Caldas
Convém Avisar os Ingleses
Quasi, 2002

Oferecido por
Rui Almeida.

Ladrar em vão

Uma manhã vazia, com certeza domingo.
Um cão a ladrar disparates
para casas estranhas, mas com certeza
não tão bem, tão caninamente como devia,
porque ninguém vem espreitar à janela,
ninguém lhe grita furioso: «Cala-te»

Judith Herzberg, O que resta do dia, 2008.

Oferecido por manuel a. domingos.

adeus

adeus Hemingway adeus Céline (morrestes no mesmo dia)
adeus Saroyan adeus meu bom Henry Miller adeusTennessee
Williams adeus cães mortos nas auto-estradas adeus todo o
amor que nunca foi adeus Ezra é triste é sempre triste quando
alguém dá e depois alguém tira eu compreendo
eu compreendo e dou-te o meu carro e o meu isqueiro
e o meu cálice de prata e o telhado que afasta
a maior parte da chuva adeus Hemigway adeus Céline adeus
Saroyan adeus meu bom Henry Miller adeus Camus adeus Gorky
adeus equilibrista que cais enquanto rostos sem expressão
olham para cima depois para baixo e depois afastam a cara
zanguem-se com o sol, disse Jeffers, adeus Jeffers, eu só posso pensar
que a morte de gente boa e de gente má é igualmente triste
adeus D.H. Lawrence adeus à raposa dos meus sonhos e
ao telefone
foi mais difícil do que esperava
adeus Two Ton Tony adeus Flying Circus
fizeram o suficiente adeus Tennessee minha bicha alcoólica
esta noite estou a beber uma garrafa a mais de vinho
à tua saúde.

Charles Bukowski, War All the Time, 1984.
versão de
manuel a. domingos

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