Antologia de textos com cães dentro.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

O LIVRO DA PEREGRINAÇÃO

20.

Guarda-nocturno é a loucura,
porque vigia.
A cada hora permanece parada a rir também,
e procura uma palavra para a noite sombria
e vai dizendo: sete, vinte e oito, dez, cem...

E na mão um triângulo segura,
e por tremer toca-o na orla obscura
da trompa, que não pode soprar, e canta
a canção que a todas as casas leva na garganta.

Têm uma boa noite as crianças
e ouvem a sonhar que a loucura vigia.
Mas os cães arrancam-se à argola fria
e dão grandes voltas dentro das casas como danças
e tremem depois dela se afastar,
e receiam o seu regressar.


Rainer Maria Rilke
O Livro de Horas
Trad. Maria Teresa Dias Furtado
Assírio & Alvim
Maio de 2009

quinta-feira, 12 de maio de 2016

À ESPERA DE GODOT

ACTO II
Dia seguinte. A mesma hora. O mesmo lugar.

No centro, junto à boca de cena, as botas de Estragon, tacões juntos, biqueiras afastadas. O chapéu de Lucky no mesmo sítio. A árvore tem quatro ou cinco folhas. Entra Vladimir, agitado. Pára e olha durante algum tempo para a árvore, começa então de repente a andar febrilmente pelo palco. Pára junto às botas, agarra numa, examina-a, cheira-a, exprime nojo, pousa-a cuidadosamente no mesmo sítio. Anda de um lado para o outro. Pára na direita e olha para longe protegendo os olhos com a mão encostada à testa. Anda de um lado para o outro. Pára na esquerda, faz o mesmo. Anda de um lado para o outro. Pára e começa a cantar alto.

VLADIMIR
Um cão entrou na —
Tendo começado num tom demasiado agudo, limpa a garganta e recomeça.

Um cão entrou na cozinha
E roubou um chourição.
Chega o chefe com o rolo
E fá-lo em massapão.

Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão —
Pára, medita, recomeça:

Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão.
E na pedra lhe escreveram
A seguinte inscrição:

Um cão entrou na cozinha
E roubou um chourição.
Chega o chefe com o rolo
E fá-lo em massapão.

Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão —
Pára, medita, recomeça:

Logo os outros cães vieram
A enterrar o pobre cão —
Pára, medita, Suavemente:

A enterrar o pobre cão...

Fica calado e quieto durante algum tempo, começa então a andar febrilmente pelo palco. Pára em frente à árvore, anda de um lado para o outro, pára em frente às botas, anda de um lado para o outro, pára na direita, olha para longe, pára na esquerda, olha para longe. Estragon entra pela direita, descalço, cabisbaixo, atravessa o palco lentamente. Vladimir volta-se e vê-o.


Samuel Beckett, in À Espera de Godot, trad. José Maria Vieira Mendes, Cotovia, 6.ª edição, Agosto de 2015, pp. 77-78.

quinta-feira, 14 de abril de 2016


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

era um galgo muito magro e retraído

É nojento apanhar caca do chão com a mão envolta
num plástico azul — A civilização não obriga a cão mas à lei e
à higiene que é a ciência da absoluta limpeza — No limite o planeta
composto apenas de ferro ou carbono ou dois elementos imiscíveis
dois géneros imiscíveis dois deuses homogéneos com universos opacos
A vida seria mais uniforme ou inexistente mas o ferro não enferrujaria
ao sorriso das estátuas não corresponderia desejo nem amor nem nada
do que conspurca o optimismo quando é calmo e hegemónico — Pensar
o sujo oposto ao limpo leva-nos a agarrar a caca do cão enquanto o cão
exerce sobre nós a tolerância doméstica das minorias protegidas — Sujo
é o que se desperdiçou e mistura no limpo — O cão que caga limpa-se
o dono com obstipação limpa-se — o poeta que pensa o limite do sujo
também limpa o universo que deverá preparar-se para a perfeição
Apanhar caca em troca da convivialidade de cão erudita e estável
bem separada do amor palavroso por quem caga no mesmo lugar
que nós — mas não pensa a poesia e o sujo com o nosso optimismo


Nuno Félix da Costa, in O Desfazer das Coisas e As Coisas já Desfeitas, Companhia das Ilhas, Novembro de 2015, p. 145.

CULPA


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

DOM ANTÓNIO

Amigos? Uns são mortos, outros longe,
Em procura da Terra-Prometida:
Restas-me tu, meu cão! Guardião d'um Monge:
Não me abandones! Deus, poupa-lhe a vida!

Chamo-te António, (deixa rir quem passa),
Acho-te digno do meu nome, sim!
Dando-te Dom, concedo-te uma graça,
Que El-Rei, teu Amo, não concede a mim...

Tens expressões de homens, olhar de gente,
Cheio de treva, como os subterrâneos!
Tens ar, toilette, e és mais inteligente
Que mais do que um dos meus contemporâneos.


António Nobre, revista Presença, II série, n.º 1, 1939.

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