Antologia de textos com cães dentro.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

ELUCIDÁRIO

Cachorro
Quente, é pão com salsicha; frio, novelo de pêlo a dormitar ao lume.

Cães de circo
Raça de canídeos com dois pezinhos.

Cão
Um rabo a sorrir.

Cão de Castro Laboreiro
Se deixarmos levar o que é nosso, não é por falta de guarda.

Galgo
Cão escanzelado, mas não de fome; é de feitio mesmo assim.

Ur e o dono
Vejo-os com frequência. Ur, marfim dos dentes a reluzir, trela tensa presa à coleira; na outra ponta o dono, ar de boneco de pau, cabeça aparafusada directamente no tronco. E a cara, meu Deus, máscara eternamente a rir, olhos azuis.
Noutro dia, os dois por dentro do passeio, eu na borda, passando. Sorrateira, pareceu-me, a tensão da trela aliviou. Sem um latido, o canídeo fez-se ao salto, dentes frenados num esticão rente ao meu braço. E sentou-se a olhar-me por detrás da dentuça frustrada, de viés eu a entrever o dono em ridentes ameaços de castigo. Por Ur ter tentado ou por ter falhado o golpe?

Zurros
De repente, surdiu um vento suão que ensandeceu os bichos. E as galinhas começaram aos coaxos. Sobressaltados, os cães desalmaram-se em relinchos, os porcos em ão ãos desesperados, rãs aos cacarejos, cavalos a grunhir.
- Está tudo doido! – disse de si para si o lavrador.
Tanto bastou para que o vento amainasse, a ordem se restabelecesse: cacarejantes as galinhas, os cavalos aos relinchos, os cães a ladrar, os patos a grasnar, os porcos a grunhir, as rãs aos coaxos.
Enorme banzé!
Incomodado, o lavrador foi-se sem dizer palavra, a mastigar chilreios, misto de rugidos e grugulejos, espécie de uns zurros.

Augusto Baptista
ElucidárioOblíquoDoReinoDosBichosParaCriançasDeTôdalasIdadesFábulasParlengasMofasEnsinançasLuminosasDeAaZComNoventaENoveDesenhosRecomendadoPelaLigaDeDefesaDasLínguasEmPerigoD'Extinção&SuasFaunas
Gatopardo, 2004

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XIII

INTERIOR DE UMA mansarda. O POETA, deitado no catre, medita de olhos semicerrados. Na única cadeira existente, o CÃO. Atrás da porta está pendurada uma gaiola e, dentro da gaiola, o canário enlanguesce. É absolutamente necessário que o pássaro não dê nem um trinado durante todo o tempo que dure este primeiro, único e brevíssimo acto, pelo que se recomenda a utilização de um canário embalsamado ou de pano.

CÃO – Ouve.
POETA – (Sem mudar de posição.) O que é?
CÃO – Tenho fome.
POETA – Eu também, mas não penso nisso.
CÃO – E os ossos de ontem?
POETA – Foram-se.
CÃO – Sozinhos?
POETA – Sozinhos.
CÃO – Como foi isso?
POETA – Foi esta manhã, quando estavas na rua. O miúdo da porteira pôs-se a tocar o seu tambor de folha. Então os ossos levantaram-se e foram-se embora a desfilar três a três.
CÃO – Seriam ossos de soldados.
POETA – Foi precisamente isso que pensei. Não há muito tempo, parece-me, houve uma guerra.

Silêncio. O CÃO volta a apoiar a cabeça entre as patas e o POETA suspira profundamente.

Javier Tomeo
Histórias mínimas
Tradução de Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Livros Horizonte, 1992

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UM GIRASSOL

Poli-Maluco era o meu cão alentejano. Que morreu ontem num dia lindo de sol, com as flores a sorrir das suas cabriolas, com os pássaros a fazerem voo picado sobre as suas orelhas-capacho.
Poli-Maluco era livre de mais para viver: trouxera-o lá do Alentejo, cão de caça, cão de guarda, cão de tudo, cão sem raça, feio e farrusco. Um proletário de cabelos aos arrepios. Para meus filhos: «Pói-Maúco». Para mim: «Pói-meus-filhos».
Tinha um ano de idade: era um cão-garoto, cão-brincalhão, cão-cambalhotas. À tardinha, quando eu voltava do emprego, Poli-Maluco ia esperar-me à camioneta e dava sempre um festival de gracinhas para dono ver: corria como um bólide depois fazia uma travagem brusca no cimento e ficava a patinar uma mão cheia de metros. A seguir voltava aos saltos até ficar pendurado no meu peito, agarrado à camisola. Deitava-se no chão, dois metros adiante de mim, de barriga para o ar, a bater as patinhas: a bater palminhas.
Poli-Maluco tinha tais ganas de ver tudo, de correr tudo, de saber tudo, que parecia adivinhar quanto o tempo da sua vida tinha sido condicionado: meu querido Pói-Maúco era alegre de mais para viver. Meu querido Pói-Maúco era livre de mais para viver: morreu ontem esmagado pelos degredados do cem à hora, pelos prisioneiros da vaidade cromada, numa florida estrada dos arredores de Sintra: Pói-Maúco estava lá do outro lado a brincar com as borboletas e pinga-azeites e de repente deve ter sentido desejos de me falar.
Ficou estendido a meio do caminho: - naquela clara nesga dum trajecto que vai duma borboleta à amizade.

Eduardo Olímpio
Um girassol chamado Beatriz
1975

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(excerto de) Centauro

(…) Tem sede, muita sede, mas ali não há sinal de água. O homem olha para trás e vê que metade do céu está já coberto de nuvens. O sol ilumina o bordo nítido de um grande nimbo cinzento que avança.
É nesse momento que ouve ladrar um cão. O cavalo estremece de nervosismo. O centauro lança-se a galope entre duas colinas, mas o homem não perde o sentido: seguir na direcção do sul. O ladrar está mais perto, e ouve-se também um tilintar de campainhas e depois uma voz falando a gado. O centauro parou para se orientar, porém os ecos enganaram-no e, de súbito, num terreno baixo e húmido inesperado, aparece-lhe um rebanho de cabras e à frente dele um grande cão. O centauro estacou. Algumas das cicatrizes que lhe riscavam o corpo, devia-as aos cães. O pastor deu um grito espavorido e largou a fugir, como louco. Chamava em altos berros: devia haver uma povoação ali perto. O homem dominou o cavalo e avançou. Arrancou um ramo forte de um arbusto para afastar o cão, que se estrangulava a ladrar, de fúria e medo. Mas foi a fúria que prevaleceu: o cão ladeou rapidamente umas pedras e tentou apanhar o centauro de flanco, pelo ventre. O homem quis olhar para trás, ver donde vinha o perigo, mas o cavalo antecipou-se, e rodando veloz sobre as patas da frente, desferiu um violento coice que apanhou o cão no ar. O animal foi bater contra as pedras, morto. Não era a primeira vez que o centauro se defendia assim, mas de todas as vezes o homem se sentia humilhado. No seu próprio corpo batia a ressaca da vibração geral dos músculos, a vaga de energia que deflagrava, ouvia o bater surdo dos cascos, mas estava de costas voltadas para a batalha, não era parte nela, espectador quando muito.
(…)

José Saramago
Objecto Quase
1978

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