Antologia de textos com cães dentro.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

HISTÓRIAS DE CÃES 2

O funeral da velha decorreu sem problemas
de maior, ou sobressaltos de última hora. Vivia
na solidão dos últimos resistentes, encerrando
uma anónima genealogia e por isso no rosto
dos vizinhos só um pesar de circunstância,
a caminho do cemitério. O leve trejeito de luto
como quem cumpre um dever sem gosto
nem zelo. Atrás de um parente remoto, encerrando
o féretro, só a velha cadela parecia sangrar
dos olhos, farejando, não o rastro da morte,
mas o quotidiano caldo perdido.

Fernando de Castro Branco
Plantas Hidropónicas

Oferecido por Alberto Silva.

HISTÓRIAS DE CÃES 4

Regresso aos velhos lugares. Quantas vezes
já repeti este verso? Persiste a decomposição
das casas. A resistência das pedras é menor
que a dureza dos olhos. Um cão vadio agasalha-se
dentro da noite. Treme. Dorme à superfície
do frio. Abre uma fissura nos olhos para me
recolher em sua intimidade, num instinto
fraternal de matilha. Entre um cão e um homem
há toda uma comunidade de gestos, troca-se
um mínimo necessário de calor para que o
frio permaneça suportável.

A noite é um lugar fértil, necessário a um cão
ou a um homem. Mesmo em tempos de crise,
haverá sempre restos que sobram.
De comida ou de amor.

Fernando de Castro Branco
Plantas Hidropónicas

Oferecido por Alberto Silva.

LAMENTO POR UM CÃO

No silêncio com que o mundo te envolve,
poderias sonhar com o tempo em que corrias,
mordendo a erva, dando voltas sobre ti próprio
como no dia em que nasceste. No entanto,
limitas-te a gemer; e ninguém sabe
a que mãos te entregas, nem que obscuro fim
adias com a tua ausência na vida.


Nuno Júdice
O movimento do mundo
1996


Oferecido por Rui Almeida.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #4


quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

O CÃO DA TRIBO

E vieram as chuvas com as suas navalhas de
água,
onde perco a vida.
E,
da vida já distante, regresso à sua caudalosa
ruína, lambendo as feridas.
Seja pois, o cão da amaldiçoada tribo,
apagadas as fogueiras no sonho dos dançarinos.
Vagueio ao longo das tendas e é quase
inverno,
escasso o cereal.
Voltados para a iluminação,
os moribundos clamam pelas irmãs da
planície.
A minha cauda roça a constelação do meu
nome.
Aspiro um inconfundível odor.
O sangue tinge o rio lá em baixo, quando
te deitas sobre as dunas,
devagar,
cruelmente resignada.
A discórdia voltará aos lares.

José Agostinho Baptista
Paixão e Cinzas
1992

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #3


terça-feira, 11 de dezembro de 2007

AO MEU CÃO

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

30-5-1966


Cristovam Pavia
O Tempo e o Modo
Outubro de 1966


Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #2


domingo, 9 de dezembro de 2007

Mulher sem medo,
ela foi-se do degredo.
Lançou os cães atrás dela
o marido, que a cadela
há-de voltar queira ou não.
Já lhe ladra seu irmão,
abocanhando-lhe um pé,
uivam-lhe os pais pela fé
de quem governa este mundo:
que presa fique no fundo
do poço justo da lei,
ou enforcada no cume
do altar da grei.


Júlio Henriques
Modas & Bordados d'Alice Corinde
Fenda, 1995


Oferecido por Rui Almeida.

sábado, 8 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #1


sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Se me pedirem ponho-me de quatro
em duas, em uma
abano a cauda
dou voltas
faço de morta
salto por uma bolacha
lambo-te os pés.

Derreto-me toda quando me fazem festas na barriga.

Sou a cadela
que jamais alguém abandonou.


Miriam Reyes
Bela Adormecida
Tradução de Pedro sena-Lino
Cosmorama, 2006


Oferecido por Rui Almeida.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

UM CÃO LADROU NA NOITE

Um cão ladrou na noite. Uma lâmpada algures
brilhou no nevoeiro ou um comboio passava.
Todo esse ar, toda essa escuridão
encolerizada com o joio e os calmos canais.
E o que é que dói e que perdura?
Um comboio desventra as lonjuras negras,
ar frio, a nódoa de cinzas e de folhas
infecta a minha língua. Acordado antes de amanhecer.
Nem um rato. Nem um pássaro.
A noite passada dois violinos na rádio
como rios demais frios para os cisnes criarem.
Rios na Polónia e na Alemanha
deixaram odores no meu corpo e cabelo.
Perguntas: Haverá paz até ao Natal?
Seguimos viagem. O jardim
é incapaz de falar, capaz de falar.

Peter Levi
trad. Manuel de Seabra
Antologia da Poesia Britânica Contemporânea

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

PÁGINAS DE CASA

PORTUGAL VISITED - 1955 (excerto)

O dia foi simples. Dois amigos ingleses convidaram-nos a ir almoçar à Arrábida, tomar banho e passeio. Um deles era coronel reformado dos lanceiros da Índia, o outro era major do mesmo regimento, também reformado. O coronel passava férias em casa do major, tinha trazido o último modelo de uma máquina fotográfica, queria retratos dos aspectos mais pitorescos do nosso país.
Almoçámos no Gama, pai do querido Sebastião da Gama, que no Céu ainda deve poetizar com maior perfeição. Na Arrábida, o inglês coronel apenas tirou uma fotografia, ao grupo de nós quatro. Depois demos uma volta grande. Fizemos mais de 150 quilómetros adentro de um dia lindo para, ao fim e ao cabo, pararmos à porta de um canil de luxo onde uns setenta cães iguais e quase todos autênticos estavam amestrados pelo chicote de um outro inglês simpático e que não era coronel nem major.
O nosso coronel desabrochou, ficou doido com a canzoada toda, puxou a sua máquina fotográfica cheia de mimo e tirou o rolo a todos os cães e cadelas, isolados, sós, em grupos casais, divorciados, amantizados, cães amando outros cães, cães de cadela amando cadelas, fotografia de pormenores com teleobjectiva, com focinho, orelhas e rabo, panorâmica de todos estes matrimónios e bicharada, o coronel levava uma recordação curiosa, pitoresca, de Portugal. O nosso homem da Índia, lanceiro de outrora, reformado com pontualidade, tinha ganho o dia. Os cães estavam felizes, davam ao rabo, lambiam gemadas, caldos de burro, sentiam-se perfeitamente à vontade no refeitório do canil onde dois lacaios se esmeravam a prepararem bons petiscos para eles saborearem. O coronel tirou mais fotografias, agora interessava-o as paredes do refeitório, retratar minúcias que lhe tinham passado despercebidas na sua primeira tentativa de visão global. Depois, com as fêmeas para um lado, e os machos para outro, ele perfilou-se e fez continência de despedida. O major, dois passos atrás, olhava maravilhado para a cena, eu tentava assobiar quando fui repreendido, assustava a calma da canzoada. Em Salvaterra de Magos prestei meu tributo ao luxo de uns cães e à sensibilidade canina de dois reformados do exército de Sua Majestade Britânica.

Ruben A.
Páginas (VI)
1970

Oferecido por Rui Almeida.

CÃO EMIGRANTE

Vens de regresso ao corpo
vadio cão de memórias já sofridas

Em teu latir
lembrado esquecimento
nitidamente negra a cor de fáceis mãos

É de ternura agora e sempre
meu sangue de verso e de silêncio
de animal e verso a boca soma 2

Ò cão de ausência longe a mãe postal lido
humano irmão num grito de viagem

Aqui danado cão me dói
nua
a palavra


Urbino de San-Payo
Colóquio / Letras
Janeiro de 1980


Oferecido por Rui Almeida.
os mercadores de unguentos atravessam as paredes
pergunto em que acredito que memórias salvamos
arrombam as moradas esgrimem a blandícia
ameaçam com o inferno excluem-me estrangeiro
às vezes dou por nós submersos como um rio
devorado por suas próprias margens quem me
interdita o mundo? ignoro a porta e desço
sobre um lasso piano um lençol todo branco
e a música que resta sou eu como um navio
apontando ao destino o mistério da proa
ou lançando as suas luzes pálidas sobre
a pólvora dos astros que o oceano duplica
por aqui o camarote é individual um banco
um beliche um espelho um íntimo cardume
e a poalha das verrugas caligráficas que
vou ferindo na doce criptoméria oh dúctil
e mais que as outras benévola matéria
e vendo como se apressa digo como se atrasa
o rastilho do tempo rasgado a fogo e osso;
que onde amor gradeava a palavra
de enxames inocentes
ruge agora a mandíbula que ladra
com imensos dentes
cão até setembro
tenta escrever e não podes saber como se pode
contra o postigo o que digo
o osso exposto tão montanhoso tão
latido e entalado alimento de cão


28-6-89


José Sebag
Cão até Setembro
Instituto Açoriano de Cultura e Câmara Municipal da Horta, 1991


Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O MEDO

Um cão ladra a tua ausência,
acende o medo, morde
E vem de Maio o cheiro
E vem da morte...
A casa está ali entre ruínas
podem as tuas mãos erguê-la
podem teus olhos acender o fogo...

Mário Contumélias
O Ofício das Coisas
1986

NA RODA DA ETAPA

(na morte de Joaquim Agostinho)

Vestiste a amarela
e foste à vida
mas veio o cão
roer-te a roda da etapa.
Vestiste a amarela
e foste
(vê lá tu!)
à morte
que a amarela
era tua por direito,
já se colava ao corpo,
já era a pele, a outra.
O cão ladrou-te à roda
como se a tua cabeça
fosse a bicicleta
como se aqui
não fosse Portugal...
Por isso vestiste a amarela
e foste à morte
ganha a etapa última
com a gente, o povo
a vitoriar-te pelo caminho.
Difícil, campeão,
é entender porque havia tantos que choravam.

Mário Contumélias
O Ofício das Coisas
1986

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