Antologia de textos com cães dentro.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

HISTÓRIAS DE CÃES 2

O funeral da velha decorreu sem problemas
de maior, ou sobressaltos de última hora. Vivia
na solidão dos últimos resistentes, encerrando
uma anónima genealogia e por isso no rosto
dos vizinhos só um pesar de circunstância,
a caminho do cemitério. O leve trejeito de luto
como quem cumpre um dever sem gosto
nem zelo. Atrás de um parente remoto, encerrando
o féretro, só a velha cadela parecia sangrar
dos olhos, farejando, não o rastro da morte,
mas o quotidiano caldo perdido.

Fernando de Castro Branco
Plantas Hidropónicas

Oferecido por Alberto Silva.

HISTÓRIAS DE CÃES 4

Regresso aos velhos lugares. Quantas vezes
já repeti este verso? Persiste a decomposição
das casas. A resistência das pedras é menor
que a dureza dos olhos. Um cão vadio agasalha-se
dentro da noite. Treme. Dorme à superfície
do frio. Abre uma fissura nos olhos para me
recolher em sua intimidade, num instinto
fraternal de matilha. Entre um cão e um homem
há toda uma comunidade de gestos, troca-se
um mínimo necessário de calor para que o
frio permaneça suportável.

A noite é um lugar fértil, necessário a um cão
ou a um homem. Mesmo em tempos de crise,
haverá sempre restos que sobram.
De comida ou de amor.

Fernando de Castro Branco
Plantas Hidropónicas

Oferecido por Alberto Silva.

LAMENTO POR UM CÃO

No silêncio com que o mundo te envolve,
poderias sonhar com o tempo em que corrias,
mordendo a erva, dando voltas sobre ti próprio
como no dia em que nasceste. No entanto,
limitas-te a gemer; e ninguém sabe
a que mãos te entregas, nem que obscuro fim
adias com a tua ausência na vida.


Nuno Júdice
O movimento do mundo
1996


Oferecido por Rui Almeida.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #4


quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

O CÃO DA TRIBO

E vieram as chuvas com as suas navalhas de
água,
onde perco a vida.
E,
da vida já distante, regresso à sua caudalosa
ruína, lambendo as feridas.
Seja pois, o cão da amaldiçoada tribo,
apagadas as fogueiras no sonho dos dançarinos.
Vagueio ao longo das tendas e é quase
inverno,
escasso o cereal.
Voltados para a iluminação,
os moribundos clamam pelas irmãs da
planície.
A minha cauda roça a constelação do meu
nome.
Aspiro um inconfundível odor.
O sangue tinge o rio lá em baixo, quando
te deitas sobre as dunas,
devagar,
cruelmente resignada.
A discórdia voltará aos lares.

José Agostinho Baptista
Paixão e Cinzas
1992

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #3


terça-feira, 11 de dezembro de 2007

AO MEU CÃO

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

30-5-1966


Cristovam Pavia
O Tempo e o Modo
Outubro de 1966


Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #2


domingo, 9 de dezembro de 2007

Mulher sem medo,
ela foi-se do degredo.
Lançou os cães atrás dela
o marido, que a cadela
há-de voltar queira ou não.
Já lhe ladra seu irmão,
abocanhando-lhe um pé,
uivam-lhe os pais pela fé
de quem governa este mundo:
que presa fique no fundo
do poço justo da lei,
ou enforcada no cume
do altar da grei.


Júlio Henriques
Modas & Bordados d'Alice Corinde
Fenda, 1995


Oferecido por Rui Almeida.

sábado, 8 de dezembro de 2007

PRENDA DE NATAL #1


sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Se me pedirem ponho-me de quatro
em duas, em uma
abano a cauda
dou voltas
faço de morta
salto por uma bolacha
lambo-te os pés.

Derreto-me toda quando me fazem festas na barriga.

Sou a cadela
que jamais alguém abandonou.


Miriam Reyes
Bela Adormecida
Tradução de Pedro sena-Lino
Cosmorama, 2006


Oferecido por Rui Almeida.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

UM CÃO LADROU NA NOITE

Um cão ladrou na noite. Uma lâmpada algures
brilhou no nevoeiro ou um comboio passava.
Todo esse ar, toda essa escuridão
encolerizada com o joio e os calmos canais.
E o que é que dói e que perdura?
Um comboio desventra as lonjuras negras,
ar frio, a nódoa de cinzas e de folhas
infecta a minha língua. Acordado antes de amanhecer.
Nem um rato. Nem um pássaro.
A noite passada dois violinos na rádio
como rios demais frios para os cisnes criarem.
Rios na Polónia e na Alemanha
deixaram odores no meu corpo e cabelo.
Perguntas: Haverá paz até ao Natal?
Seguimos viagem. O jardim
é incapaz de falar, capaz de falar.

Peter Levi
trad. Manuel de Seabra
Antologia da Poesia Britânica Contemporânea

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

PÁGINAS DE CASA

PORTUGAL VISITED - 1955 (excerto)

O dia foi simples. Dois amigos ingleses convidaram-nos a ir almoçar à Arrábida, tomar banho e passeio. Um deles era coronel reformado dos lanceiros da Índia, o outro era major do mesmo regimento, também reformado. O coronel passava férias em casa do major, tinha trazido o último modelo de uma máquina fotográfica, queria retratos dos aspectos mais pitorescos do nosso país.
Almoçámos no Gama, pai do querido Sebastião da Gama, que no Céu ainda deve poetizar com maior perfeição. Na Arrábida, o inglês coronel apenas tirou uma fotografia, ao grupo de nós quatro. Depois demos uma volta grande. Fizemos mais de 150 quilómetros adentro de um dia lindo para, ao fim e ao cabo, pararmos à porta de um canil de luxo onde uns setenta cães iguais e quase todos autênticos estavam amestrados pelo chicote de um outro inglês simpático e que não era coronel nem major.
O nosso coronel desabrochou, ficou doido com a canzoada toda, puxou a sua máquina fotográfica cheia de mimo e tirou o rolo a todos os cães e cadelas, isolados, sós, em grupos casais, divorciados, amantizados, cães amando outros cães, cães de cadela amando cadelas, fotografia de pormenores com teleobjectiva, com focinho, orelhas e rabo, panorâmica de todos estes matrimónios e bicharada, o coronel levava uma recordação curiosa, pitoresca, de Portugal. O nosso homem da Índia, lanceiro de outrora, reformado com pontualidade, tinha ganho o dia. Os cães estavam felizes, davam ao rabo, lambiam gemadas, caldos de burro, sentiam-se perfeitamente à vontade no refeitório do canil onde dois lacaios se esmeravam a prepararem bons petiscos para eles saborearem. O coronel tirou mais fotografias, agora interessava-o as paredes do refeitório, retratar minúcias que lhe tinham passado despercebidas na sua primeira tentativa de visão global. Depois, com as fêmeas para um lado, e os machos para outro, ele perfilou-se e fez continência de despedida. O major, dois passos atrás, olhava maravilhado para a cena, eu tentava assobiar quando fui repreendido, assustava a calma da canzoada. Em Salvaterra de Magos prestei meu tributo ao luxo de uns cães e à sensibilidade canina de dois reformados do exército de Sua Majestade Britânica.

Ruben A.
Páginas (VI)
1970

Oferecido por Rui Almeida.

CÃO EMIGRANTE

Vens de regresso ao corpo
vadio cão de memórias já sofridas

Em teu latir
lembrado esquecimento
nitidamente negra a cor de fáceis mãos

É de ternura agora e sempre
meu sangue de verso e de silêncio
de animal e verso a boca soma 2

Ò cão de ausência longe a mãe postal lido
humano irmão num grito de viagem

Aqui danado cão me dói
nua
a palavra


Urbino de San-Payo
Colóquio / Letras
Janeiro de 1980


Oferecido por Rui Almeida.
os mercadores de unguentos atravessam as paredes
pergunto em que acredito que memórias salvamos
arrombam as moradas esgrimem a blandícia
ameaçam com o inferno excluem-me estrangeiro
às vezes dou por nós submersos como um rio
devorado por suas próprias margens quem me
interdita o mundo? ignoro a porta e desço
sobre um lasso piano um lençol todo branco
e a música que resta sou eu como um navio
apontando ao destino o mistério da proa
ou lançando as suas luzes pálidas sobre
a pólvora dos astros que o oceano duplica
por aqui o camarote é individual um banco
um beliche um espelho um íntimo cardume
e a poalha das verrugas caligráficas que
vou ferindo na doce criptoméria oh dúctil
e mais que as outras benévola matéria
e vendo como se apressa digo como se atrasa
o rastilho do tempo rasgado a fogo e osso;
que onde amor gradeava a palavra
de enxames inocentes
ruge agora a mandíbula que ladra
com imensos dentes
cão até setembro
tenta escrever e não podes saber como se pode
contra o postigo o que digo
o osso exposto tão montanhoso tão
latido e entalado alimento de cão


28-6-89


José Sebag
Cão até Setembro
Instituto Açoriano de Cultura e Câmara Municipal da Horta, 1991


Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O MEDO

Um cão ladra a tua ausência,
acende o medo, morde
E vem de Maio o cheiro
E vem da morte...
A casa está ali entre ruínas
podem as tuas mãos erguê-la
podem teus olhos acender o fogo...

Mário Contumélias
O Ofício das Coisas
1986

NA RODA DA ETAPA

(na morte de Joaquim Agostinho)

Vestiste a amarela
e foste à vida
mas veio o cão
roer-te a roda da etapa.
Vestiste a amarela
e foste
(vê lá tu!)
à morte
que a amarela
era tua por direito,
já se colava ao corpo,
já era a pele, a outra.
O cão ladrou-te à roda
como se a tua cabeça
fosse a bicicleta
como se aqui
não fosse Portugal...
Por isso vestiste a amarela
e foste à morte
ganha a etapa última
com a gente, o povo
a vitoriar-te pelo caminho.
Difícil, campeão,
é entender porque havia tantos que choravam.

Mário Contumélias
O Ofício das Coisas
1986

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Os meus fantasmas

Uma caneta que não escreve
no momento que o poema
aperta

Cães a ladrar
para espantar a noite
que aperta contra
o poema que a caneta
não escreve

na noite
onde cães ladram
para espantar a caneta
que não escreve
o poema

que aperta
que me aperta

E a caneta que não escreve
e os cães a ladrar para espantar a noite
para espantar a caneta
que mesmo assim
não escreve o poema
que aperta

Os meus fantasmas?
Não são para aqui
chamados

Poema inédito de manuel a. domingos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A RUA (excerto)


Três soldados e um cão atrás

De quem é a graça?
Do cão.
Em que reside?
No cão... familiar e subordinado,
dedicado.
Ou fantasista, repententista.
Quem o sabe?
Cão atrás de soldados.

Era do cão a graça?
Certamente era.
Um cão humano, ou quase,
voluntário e subordinado.
Mais vivo, até mais impressionante,
mais simpático sem o saber
que os seus donos desinteressados.
Guapos rapazes, em todo o caso.
De corpo para a frente,
um pouco desencontrados,
de espingarda ao ombro
conversando e avançando
como uns bonecos articulados.

Três só, à vontade.
E o cão, toca que toca
com as suas quatro patas precipitadas
num salto cadente...
Como uma coisa esquecida!
Humilde e alegre criado,
uma parte da vida
sem valor nem preço
daqueles simples rapazes.

Três... a andar, falando de quê?
Pode-se lá saber, sabe-se lá!
Três numa linha breve,
um traço móvel desta rua torta, matinal e ensoalhada.
Três, com o seu cão atrás.
Aquele bicho malhado
que precisava de os seguir,
de os acompanhar,
de lhes ser um ente familiar.
Aquele cão...
aquele cão, que só pintado!

Irene Lisboa
Seara Nova
1946



Oferecido por Rui Almeida.

A IRONIA

A ironia, essa graciosa coisa
que nos faz rir
do que dá vontade de chorar,
este cãozinho que salta
preso à trela, atrevido e reprimido,
a ironia... a minha ironia!
queria-a eu tão medida e inteligente,
tão rebuçada, tão independente
e tão seca, mesmo,
que mal fosse percebida.

Que no ligeiro riso vissem aquiescência,
na reserva simples dúvida,
na cortesia aceitação...

Que a minha ironia calada,
e quase séria, fosse o meu baluarte.
Adormeceu, diriam os sitiantes...
(Sitiantes, rica palavra!
Os que estão de fora
e comentam intenções, intimidades...)

Ó minha ironia, meu cãozinho!
a tua voz... é um latido
muito pouco musical e breve,
quase ríspido, de puro desenfado.
Ou se o não é,
por imperfeitamente educada,
queria que eu fosse!

Irene Lisboa
Seara Nova
1936


Oferecido por Rui Almeida.

cão

um cão
a andar sozinho pelo passeio num quente
verão
parece ter o poder
de dez mil deuses.

porquê?

Charles Bukowski
Love is a Dog from Hell
1977

versão de manuel a. domingos

terça-feira, 13 de novembro de 2007

À MESA DO AMOR

10.

A minha alegria tem mais de quatro sílabas
e o dia de hoje é feito com pedaços de um
cão: focinho, patas, cauda, orelhas, dentes, peito e flancos.
Esta alegria é afluente do cão incompleto,
dia pródigo, diferente de outros dias, bárbaro
em sua luz, no modo como caminha e se diz
vocábulo monossilábico - o dia: o cão.
Dia de cão, dia de estrela branca, rodando, perseguindo a cauda.
Cão nervoso, flexível, alto. Dia áspero,
maduro, transparente, dia animal,
cão de cristal ou lâmpada ou éter
que evapora na tarde, cão que arde, instável,
amável e doente. Cão de um dia, cão
da minha alegria. Irreparável. Inocente.

Joaquim Pessoa
À Mesa do Amor
Átrio
1994

AS CRIANÇAS FALAM (excertos)


“O cão foi a casa da mãe. Depois encontrou um lobo. Depois o lobo foi atrás da mãe. E depois o urso foi atrás do lobo. E depois o lobo foi para casa da mãe morder. Depois o lobo foi atrás do cão. E depois o cão mordeu a mãe. E o cão foi para casa.”
Acabou?
“Não, ainda falta muito.
E depois o cão foi para a piscina e depois o cão da piscina tinha o rabo molhado. Depois o cão disse à mãe para ir aos anos. Depois o cão foi atrás da mãe depois o cão mordeu a mãe. Depois o Dadá foi à minha casa. E foi ao Jardim Zoológico comigo.

Ainda não acabou...

Depois o cão estava à noite e chegou fora da varanda. Depois o cão foi atrás da mãe. E depois o cão tirou a carteira à mãe.”

Intervém o Carlinhos (6a. 4m.):

“A mãe é cão? Uma mãe que não é cão? Então é a dona. A Joana está a complicar as coisas.”

Continua a Joana (3a. 11m.):

“E depois a mãe deu uma carta ao cão. Depois o cão deu uma carta à mãe. Já acabou.”

– // –

“Quero dizer uma história!

Era uma vez um gato maltês. E era uma vez um cão maltês. E o cão maltês casou com o gato maltês. E depois apareceu um boi. E depois o boi rosnou. E depois o cão maltês e o gato maltês acharam que era muito barulho. E depois foram à janela ver e viram que era um boi e mandaram o boi embora.”

Miguel, 5a. 10m.

– // –

Pintando o Pimpão:

Guidinha, 5a. 2m. (comenta, sobre pintura do Filipe):
– “Um cão com quatro patas!”

Filipe, 6a. 1m. (imediato):
– “Ah! Então como é que tu querias? Um cão tem quatro pernas.”

depois, a rir, diz:
– “Se tivesse só duas era uma galinha.”

A Guidinha imita o andar de um cão, sem apoiar os braços no chão.
O Filipe tem a mesma atitude que nas frases e imita com braços e pernas no chão.

– // –

“Quer ouvir a cantiga do caracol?

O cão vai partir o caracol
mas ele não é capaz.
O cão vai pedir à menina
que parta o caracol
e a menina diz assim:
vou partir o caracol.
E depois já partiu
e o caracol vai para casa.”

Julieta, 3a. 4m.

– // –

C. – “Eu também “
F. – “Eu também quero dizer uma história.”
C. – “Uma vez era um menino...”
F. – “Eu também, sim?”
C. – “ Uma vez era um menino que estava em cima do telhado de uma casa e ele queria saltar de lá. Depois deu um salto para cima de um cavalo. Depois o homem disse: Ó menino olhe que o cavalo não é seu, é meu. E depois a mãe ia à compras e viu o filho em cima do cavalo e foi com ele às compras. E depois ele queria ir à escola e a mãe levou à escola. E depois a mãe levou para a escola e o menino fez pintura, foi almoçar e começou a brincar com os talheres. E depois tiraram os talheres. Depois puseram outra vez e ele comeu. Depois telefonou para a mãe e a mãe veio cá buscar e o menino foi para casa. Depois tinha um cão grande e o cão estava na casota lá fora e os patinhos estavam dentro de casa. Amanhã conto mais. Amanhã acabo.”

Carlinhos, 5a. 8m.
Francisco, 4a. 1m.

– // –

“Era uma vez um cão que quando as pessoas corriam atrás dele, o béu-béu corria atrás das pessoas.”

Pilar, 7a. 10m.
História manuscrita

Adriana Areal Calvet e Elsa Anahory (recolha e selecção)
Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite, 1973


Oferecido por Rui Almeida.

Lenda do Cão Maior e do Cão Menor

O Cão Maior e o Cão Menor eram os cães de caça de Orionte. O Cão Maior era tão veloz que podia apanhar qualquer animal. Por isso, tinha muito valor para Orionte.
Os Egípcios antigos viam a brilhante estrela Sírio como o deus Anúbis, o deus com corpo de homem e cabeça de chacal. Quando Sírio aparecia no horizonte antes do nascer do Sol, era a época das cheias do Nilo, que era de grande importância para os agricultores que viviam ao longo do rio, dado que as cheias traziam o lodo que tornava as terras mais férteis. Ficou conhecido como Estrela do Cão (Sírio) e os dias quentes de Verão, entre Julho e princípios de Setembro, foram designados por dias de canícula.

Milton D. Heifetz e Wil Tirion
Um Passeio pelos Céus – Um Guia de Estrelas, Constelações e Lendas
Tradução de Máximo Ferreira
Gradiva, 1998
Oferecido por Rui Almeida.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O UIVO

Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.

Luís Miguel Nava
Rebentação
1984

OS OSSOS

Um dia, ao acordar, deu por ter deixado todos os seus ossos num dos sonhos, do qual, como dum espelho, a carne e a roupa juntas irrompiam. Nunca mais desde então os pôde espetar na realidade, coisa que antes tanto se orgulhava de fazer.
Talvez num cão fosse possível encontrar a necessária obstinação para os trazer de novo à superfície. Contudo, a tal profundidade os ossos estariam que, por muito que o animal escavasse, sob as suas patas haveriam de romper as águas de mil rios, pedras, folhas, a enxurrada do universo e, embravecido, o próprio mar, mais tudo aquilo ainda de que habitualmente os sonhos se compõem, antes que deles se deixasse adivinhar o mais breve vestígio.

Luís Miguel Nava
O Céu Sob as Entranhas
1989

O LUGRE (excerto)

TI JOÃO DAS ALMAS: O Albino não foi sempre como hoje é. Eu conheci-o em novo: primeira linha do lugre «Senhora do Mar»!
ZÉ ESPADA: Primeira linha?! (Gargalhada.) Nunca o foi, nunca!
TI JOÃO DAS ALMAS: Tão verdade, como haver Deus no céu: primeira linha, o melhor pescador daquele navio! Digo-te eu, Zé Espada: dobra a língua e não me desmintas!
TÓ VERDE: Pois agora nem pra moço serve... Primeira linha!?
TI JOÃO DAS ALMAS: (tristemente): Foi depois do naufrágio que ele ficou assim: o «Senhora do Mar» afundou-se, a navegar para a Gronelândia, com fogo a bordo. Alguns de vocês hão-de estar lembrados: tu, Zé Robalo, estvas a bordo... e tu, Cara Dura, levavas o teu irmão de contramestre nesse lugre... (Silêncio; evocando.) Onze dias e onze noites no mar: sem água, sem comer, sem roupa, sem nada! (Irado, para os novos.) Vocês... vocês sabem lá o que isto é? Nem tu, Zé Sol; nem tu, Tó Verde; nem tu, Zé Espada... não sabem, não sabem! Onze dias e onze noites! Eram trinta e dois homens e oito botes: quatro em cada dóri. Sabem quantos se salvaram? (Com força, levantando-se.) Sete. Sete, oiçam bem! Os outros morreram todos: muitos de fome e de sede, alguns levados pelas ondas, e uns cinco – ai! estes eram os mais medonhos, aqueles que uma criatura nunca mais pode esquecer, nem de dia, nem de noite! – de juizinho varrido, atiraram-se ao mar, aos gritos, com os olhos rebentados... Nem me quero lembrar! Que Deus me perdoe, mas quando penso naqueles dias, naquelas horas malvadas que nunca mais acabavam... dá-me vontade de cuspir prò céu! (Severo, indignado.) Que admira, que admira, digam-me cá, que o Albino, depois disto, não ficasse o mesmo homem?!...
ZÉ ESPADA: Esta agora! então não querem ver?! Naturalmente foi ele o único que naufragou... A gente sempre ouve cada brisada!
TI JOÃO DAS ALMAS: Assim, do mesmo modo que ele, poucos, raros em toda a frota, fiquem vocês sabendo! Onze dias e onze noites... Ah homens, olhem que no bote do Albino só escapou ele e mais ninguém! Para se aguentar, teve que matar o cão de bordo: e ele gostava do bicho, como se alma cristã fosse! Comeu-lhe a carne crua e bebeu-lhe o sangue ainda quente... É ou não verdade isto, ó Zé Robalo?

Bernardo Santareno
O Lugre – peça em seis actos
1959


Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO


À noite ou no dia, ele
sempre acorreu.
Mas no fundo do olho

vigia ainda
uma surpresa, um quê
de indiferente aos chamados.

Quando corre em círculos
à nossa volta ou quando
dormita junto ao fogão,

o uivo antigo
espreita em seu hálito.
(Quem o tiraria de lá?)

Para cumprimentá-lo
seria preciso
ladrar.
Renato Suttana
Bichos
Oferecido por Nicolau Saião.

domingo, 28 de outubro de 2007

CÃO MORRE DE SEDE E DE FOME EM EXPOSIÇÃO

Cão exposto
Um artista da Costa Rica, Guillermo Habacuc Vargas, expôs um cão vadio faminto numa galeria de arte. Ninguém o alimentou ou lhe deu água, morreu durante a exposição. Guillermo Habacuc Vargas foi o artista escolhido para representar o seu país na "Bienal Centroamericana Honduras 2008". Existe uma petição onde é pedido que ele não receba este prémio. Por favor assinem preenchendo o Nome, email, Localidade e País.

Recebido no e-mail.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

NAS MARGENS DO DORDOGNE

Os cães uivam
chamam a noite. Com todo
o desespero dos animais.
O rio arrasta-se até
às estrelas. Nós pomos
as pedras no barco.

Hans-Ulrich Treichel
Como se fosse a minha vida
1994

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

DIÁRIO DE UM LOUCO (fragmento)

Novembro, 11
Hoje estive no gabinete do nosso director, afiei para ele vinte e três penas e, para Sua - ai, ai! - Excelenciazinha, afiei quatro. O director adora ter imensas penas em cima da mesa. Uui! Deve ser uma grande cabeça! Sempre clalado, mas a cabeça, acho eu, sempre a reflectir muito. Gostaria muito de saber o que, preferencialmente, ele pensa, o que se trama naquela sua cabeça. Apetecia-me estar por dentro da vida desses senhores, ver de perto todos aqueles esmeros, equívocos, cortesanias, como é, o que eles fazem no seu círculo - era isso que eu gostaria de conhecer! Já pensei por várias vezes ter uma conversa com Sua Excelência, mas, cos diabos, a língua não me obedece: limito-me a dizer que está frio ou calor na rua, não conseguindo articular, definitivamente, mais nada. Gostaria de dar uma espreitadela pela sala de estar, de que apenas vislumbro às vezes a porta aberta, e por mais outra sala a seguir à de estar. Que rica decoração! Que espelhos e porcelanas! Gostaria de dar uma olhada por ali, por aquela parte da casa onde ela, Sua Excelência, vive - era isso que me apetecia! Ver-lhe o boudoir: como se espalham por lá aqueles frasquinhos, vidrinhos, flores, essas coisas que até faz medo respirar para cima delas; como paira lá o seu vestido, que mais se assemelha ao ar do que a um vestido. Gostaria de espiar o seu quarto de dormir... ali, penso eu, são só milagres, um paraíso que, penso eu, nem no céu existe. Que bom seria ver o banquinho onde ela, quando se levanta da cama, põe o pezinho, como calça no pezinho uma meia branca de neve... ai, ai, ai!, nada, nada, calo-me.
Hoje, entretanto, foi para mim como que uma iluminação: lembrei-me da conversa das duas cadelas que ouvira na Avenida Névski. «Ora bem - pensei -, agora vou saber tudo. é preciso interceptar a correspondência entre essas duas malditas cadelas. Hei-de tirar com certeza alguma coisa dessa correspondência.» Confesso que cheguei mesmo a chamar a Medji e a dizer-lhe: «Ouve, Medji, estamos aqui só os dois e, se quiseres, posso também fechar a porta e já ninguém nos vê... conta-me tudo o que sabes da menina. Como é ela? O que faz? Juro por Deus que não conto a ninguém.» Mas a manhosa meteu o rabo entre as pernas, encolheu-se toda e saiu devagarinho pela porta como se não tivesse ouvido nada. Suspeito desde há muito que o cão é bastante mais esperto do que o homem: sempre estive convencido, até, de que o cão sabe falar, só que tem um feitio teimoso. O cão é um político extraordinário: repara em tudo, em todos os passos do homem. Está decidido: custe o que custar, amanhã mesmo vou ao prédio de Zverkov, interrogo Fidèle e, se for possívl, intercepto todas as cartas que Medji lhe escreveu.
Nikolai Gógol
Contos de São Petersburgo
Trad. Nina Guerra, Filipe Guerra
Biblioteca Editores Independentes

UM CÃO LADRA

Um cão ladra, monótono, insistente:
dois latidos que se repetem, quando
a noite se apresenta e uma criança chora,
por perto. Uma persiana fecha-se.
O cão prossegue. Por vezes, apenas um latido,
como se estivesse cansado. Mas persiste.
A noite é esse latido. Não a vida,
monótona, insistente, que procura outra
metáfora. Por toda a noite, um cão ladra.

José Alberto Oliveira
Nada Tão Importante Que Não Possa Ser Dito
Assírio & Alvim, 2007


Oferecido por Rui Almeida.

ESCULTURA VILI

República do Congo
Séc. XVIII
Oferecido por Rui Almeida.

BALADA PARA HILDA BLUM

À meia-noite, os cães de Islington, de grande rasto azul perseguido, quase se abrigam em ti, no soluçar das estátuas.

Há luzes que riscam teu supremo perfil de hetaira abandonada: uma frase repousa imóvel no tempo de Karlsbad, a cabeleira fosca de Colette alastra na noite.

East Pakistan could find itself with more funds available than it has now. Even more appealing...

Pitonisa do silêncio, águia poluída que és!

Nas esquinas de Novembro, vais caminhando – secreto sorriso que sabes de cor, hesitaçao à beira dos semáforos.

Mas logo que os teatros se esvaziam, é nos degraus do foyers que te sentas sempre, aconchegada em teu velho casaco de marta, fumando lentamente o cigarro amarelo, indagando de nós a loucura que trazes.

... What do you mean we took land away from the Arabs? Don’t forget that Jordan took East Jerusalem by force in 1948.

Eu não sei, Hilda Blum, quantas ruas tropeças, que terra de que parque se apega aos sapatos arrombados que tens.

Minúscula e bêbeda, guardas na pequena mala, entre folhas de plátano, comprimidos, lenços esburacados, o bilhete escrito de forma soletrada no centro do álcool.

... «I’m just getting sweeter and sweeter» ... «I’m not so objectionable any more» ... press conference at wish she ... still contains a liberal pinch of salt.

Retiras as meias, e falas esquecidamente: do sinistro olhar do escultor que te quis o busto, do jeito que tinha outrora André Willy dizendo um poema no boulevard.

Martelada até nunca, a velha maquina esgalgada de tua litania investe contra a madrugada do quarto.

Agora Karlsbad são as estátuas, os cães que se abrigam em torno de ti.

Yesterday, after a lengthy public session, the committee...

E bebes e repetes: os longos jardins, os bigodes tão loiros do jovem Kronprinz, a tarde de Verão na Grande Corniche no tempo de após chá.

Mil e uma vezes pedes desculpa. Por ti e por nós – por todos os cães.

Depois, amarrotado o jornal da véspera, escutado o world service, bebes ainda, ainda.

«... was not the Old Vic...». So I asked myself, «why not make pubs for them to take home with them?»

E quando as horas se escoam, e o Sol vem rasando os cais do Tamisa, só fica do teu rosto, da noite que o leva, um clarão que desfalece de pó-de-arroz e carmim.

Pitonisa, Pitonisa!

... And this was tonight’s news.


Mário Cláudio
Itinerários - Contos
1993

Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

MARINHA COM CACHORROS

Vi-os latirem para o mar,
treparem nas pedras que se empilham
no sopé do Mont Serrat
enquanto branquejavam murada
e bastiões do velho forte, feito museu.
Vi-os, cachorros, compondo seu balé de ferozes,
cheirando o quê, de meio à maresia,
era almíscar de fêmea, certeza de prole,
corneta indeclinável,
inodora para mim.
Vi-os maquinando a matilha
de focinhos de virilhas
e, de estéreis rochedos,
urdindo promíscua ilha.
Não os vi chegar. Mais cedo,
que eu, que transitava à toa,
teriam eles, cães, sido impelidos
a desertarem ruas, deveres de guarda,
ossos de aves. E gatos. E desertaram,
e o séquito
rumara colorido para a praia.

Ladravam para as ondas - vi-os. E as ondas
brigavam entre si, elas alheias:
Cães são navios. Eles, úmidos,
mantinham-se ali, caninos porém:
como salgando-se... Até
que desciam; mas subiam novamente
- eu sem entender. Às vezes,
um a outro abocanhava, mas irado,
não apenas por mostrar-se.

Era de tarde: trezentos e tantos da invasão holandesa.

Grato, mui grato,
o portentoso forte,
com seus fantasmas, com seus canhões apontados para o poente,
guarnecia o cio.

Wladimir Saldanha
Antologia 2007
Poetas na Surrealidade em Estremoz
Câmara Municipal de Estremoz
Abril de 2007

CÃES

Vê como eles andam
pela noite fora, esfregando a sombra
dos seus idênticos corpos longos nos muros
ou farejando-as, inclinadas, nas calçadas.

Pobres, livres, solitários
na nostalgia dos canis abandonados,
amordaçados por açaimos rebeldes e presos
a coleiras marcadas com os números da morte.
Aquele procura talvez a zona dos canais
e acabará no suicídio antes que amanheça.
Este outro vai procurar amor,
eterno rapagão quadrúpede
sem um tostão no bolso:
e com prazer fareja pelos cantos
pr'a se sumir na esquina de uma rua

Paolo Buzzi
Antologia do Futurismo Italiano
(original de Versos Livres, 1913)
Tradução de José Mendes Ferreira
1979


Oferecido por Rui Almeida.

POSTAL

Francis Picabia
(1879 - 1953)

O CÃO VIAJANTE

A notícia veio de São Paulo, trazida por Anhembi. Foi o caso que certo cavalheiro de posses – um grã-fino, diz a revista – regressou dos Estados Unidos em companhia de um cachorro de raça, lá adquirido. No aeroporto de Congonhas, diante dos funcionários da Alfândega, houve a abertura de malas, e verificou-se que quatro eram do cachorro: uma com roupas, outra com coleiras e focinheiras; uma terceira com vitaminas, e a última com alimentos especiais.
O comentarista fala na Revolução Francesa, que reagiu contra coisas dêsse gênero, e na Revolução Russa, que reuniu em museu as jóias oferecidas pelos aristocratas a seus cães e cavalos. Expus o caso a um cachorro de minhas relações, chamado Puck, e êle manteve comigo, por meio dos olhos e da cauda saltitante, êste diálogo quase maiêutico, embora às avessas.
– As malas eram quatro, diz você?
– Realmente, meu caro Puck.
– Com certeza eram malinhas à-toa...
– Não consta da notícia, mas presumo que fôssem malas consideráveis.
– E você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito a mala?
– Não é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante tão sóbrio de natureza, como – não é por estar em sua presença – eu considero o cão.
– E quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
– A revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
– Você acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e seu cão não tenha pelo menos quatro?
– Mas veja bem, Puck, o homem é um animal complicado e que se afastou da natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou desprezam.
– Essas coisas são necessárias à vida?
– São, na medida em que a tornam mais agradável.
– E não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de outros animais em condições de saboreá-las?
– Teòricamente, talvez. Não acha, porém, que seria caso de estendê-las antes a todos os homens?
– Elas chegam para todos?
– No estado atual da produção, é capaz de não chegarem.
– Então, que adiantaria?
– Pelo que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a minha, quando as duas se entendem há milênios.
– Engano, meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo precisamente um comêço tímido de sensibilidade, a abotoar-se como uma florzinha anêmica. Todo êsse cuidado com o cão, um simples cão (pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as criancinhas, e dia virá em que...
– Êle se estimará a si mesmo, através dos outros?
– Não vou a tanto – resmungou Puck. – Também, você está exigindo demais de seus semelhantes.


Carlos Drummond de Andrade
Fala, amendoeira
1957
Oferecido por Rui Almeida.

DENIS-ANTOINE CHAUDET

Oedipe enfant rappelé à la vie par le berger
Phorbas qui l'a détaché de l'arbre
Paris, 1763 - Paris, 1810
Pormenor.


Oferecido por Rui Almeida.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

EM MEMÓRIA DO MEU CÃO

Sobre o campo fresco
Entre camomilas bravas e serralha
Recordo-te a brincar como criança.

Arfas depois solene,
Vens a correr depois lamber-me as mãos
E bebes a longos haustos a tarde
Mansa como o teu dorso
Mansa como os teus olhos.

Breve companheiro:
Olhava-te entendias-me
E de mim só querias puro afecto.

E te perdi também.

Se és Maltês errante no Além dos cães
Ao Senhor que tudo pode em tais domínios
Pede me seja, um dia, consentido
Entrar
E afagar-te ainda uma outra vez.

1981

Adalberto Alves
O Gume e o Tempo
1982

terça-feira, 9 de outubro de 2007

mamã

aqui estou
debaixo de terra
com a minha boca
aberta
e
incapaz de dizer
mãe,
e os cães passam a correr e param para mijar
na minha campa; tenho tudo
menos o sol
e o meu fato começa a ficar
estragado
e ontem
o que restava do meu braço
esquerdo desapareceu
resta pouco, como uma harpa
sem cordas.

ao menos um bêbado
na cama com um cigarro
pode ser a causa para 5 carros
dos bombeiros e
33 homens.

eu não
faço
quase
nada.

mas p.s. – Hector Richmond na campa ao
lado só pensa em Mozart e
gomas.
ele é
muito má
companhia.

Charles Bukowski, Crucifix in a Deathhand , 1965
versão de manuel a. domingos

domingo, 7 de outubro de 2007

SPACE DOG

LAIKA

terça-feira, 2 de outubro de 2007

EM LOUVOR E ACIDENTE

VII.

De mastigar os ossos nas sílabas espessas
este cão amargo rói os dias
sob o peso da chuva com a morte
por entre os lábios o marfim das pedras

com a lua a destruir os muros sucessivos
vai latindo. Um rio que passa
tão velho e transparente sacrifício
crescendo nesta sombra de ameaças

e pequenos acidentes de percurso.
É nas súbitas varandas que palavras
neutras ou amigas se recusam
concêntricas circulam e regressam

a espaços mínimos cada vez menores
onde não é possível respirar contigo.

Alberto Soares
Escrito Para A Noite
1984

domingo, 30 de setembro de 2007

SOB O SIGNO DO CÃO

Piedade pela fome deste cão
por este sangrento pedaço de carne envenenada
Tu sabes não nos prende a piedade
muitas vezes o dissemos muitas vezes
nos perdemos antes de aceitar ficar
nesses corredores sem fim
à volta do mesmo quarto sempre
essas manhãs de lágrimas de repente entrecortadas
por viagens certas velhas casas

E no entanto sou bem eu quem pede
piedade por este cão este pedaço
de sangrenta carne envenenada
Por este rosto macerado
em silêncios de há muito já familiares
por este potro frente à faca

Alguns anos nos separam para que a peças comigo
por este cão faminto pela carne
alguns navios e alguns
litros de álcool no sangue
Eu falo-te da manhã despido por entre o gelo
o corpo aprisionado pelo gelo
é assim que te falo da manhã

Julgo não ter-te dito nunca
que seria sempre verão que se aproxima
no lugar da casa que imagino
tecida enfim à tua volta um dia
Sei que passas com o vento mas que é o vento
que fica afinal dos passos que o atravessam

Nada te peço mais e piso a areia
venho dizer-te ao mar venho perder
a memória nestas ruas vacilantes
e tropeço em ti como num barco
Já te disse tudo - que não posso
dizer-te nada que nãos eja
ainda solidão e não a quebre

Abro ao lume o coração deito-me por terra
fico mais deitado ainda do que à espera
de que bem feitas as contas sempre venhas
Peço piedade por este cão faminto
pelo seu sangrento pedaço de carne envenenada
Por esta palavra que esquece a sua boca
e ao longe de mim fica sem fim a soletrar-te

Miguel Serras Pereira
Corça
Fenda
1982

sábado, 29 de setembro de 2007

O JARDINEIRO

Há Políticos e Doutores e Políticos e suas Excelências,
para quem ser Jardineiro é uma humilde e digna profissão.
Podem até achá-la bonita, colorida,
mas para dela, ganharem a vida Não.
No fundo, não dizem mas pensam uma merda de profissão,
isto para ser simples.
Para mim, que não sou poeta,
cuidar das flores,
parece ser a profissão certa,
que no centro de emprego,
tenho mais à mão.
Vamos ver, se, a cuidar das flores,
posso cuidar do ganha pão,
e, como as ideias que saem dos meus botões,
fazer com as flores a Permanente Revolução.
Depois de tirar informação,
acerca desta nova e hipotética profissão,
com um jardineiro municipal,
este informou-me haver um pequeno senão,
na sua lida habitual,
com a merda de cão.
Por isso há que fazer política,
deste meu posto,
como é de se esperar de mim
e, a primeira medida em que estou a pensar;
é pôr o seguinte letreiro, em cada público jardim:

«É EXPRESSAMENTE PROIBIDO NÃO FAZER TODA A
MERDA DOS POLÍTICOS E DOUTORES E POLÍTICOS E
SUAS EXCELENCIAS A NÃO SER MERDA DE CÃO»

Entretanto aguardo notícias do centro de emprego
e vou falando no café de Freud, Profissão
e suspirando com um título!...
Quanto ao sinal stop era a brincar.

Liberato
Manual do desempregado
2007

terça-feira, 25 de setembro de 2007

o cão vê a flor
a flor é vermelha

anda para a flor
a flor é vermelha

passa pela flor
a flor é vermelha

Ferreira Gullar
O vil metal
1954-1960

DOG WOMAN


Paula Rego
CÃES. Satie queria fazer um teatro para cães. O pano sobe. O cenário representa um osso.

*
* *
Em Inglaterra acaba de ser rodado um filme para cães. Os cento e cinquenta cães convidados para a estreia precipitam-se sobre o écran e fazem-no em pedaços (N.Y. Times).

*
* *
Rua La Bruyere, 45, em casa de meu avô grande inimigo dos cães e maníaco de ordem, saio (tinha catorze anos) com um fox de um ano e meio, que mal conseguia que me fosse sendo tolerado em casa. Ao fundo dos degraus brancos do vestíbulo, o meu fox arqueia-se e alivia-se. Eu precipito-me de mão levantada. A angústia dilata os olhos do pobre animal; devora o seu excremento e põe-se depois com o melhor ar que lhe é possível.

*
* *
Na clínica, dão às cinco horas ao velho buldogue moribundo uma injecção mortal de morfina. Uma hora depois, o cão brinca no jardim, salta, rebola. No dia seguinte, às cinco horas, arranha a porta do médico e pede nova injecção.

*
* *
O cão de M.me de C..., em Grasse, apaixonado pela cadela de Marie C..., que mora a alguns quilómetros de distância. Espera pelo autocarro, salta para a plataforma. O jogo é igual no regresso.

*
* *
Tinham vendido, na rua, um cão minúsculo a M.me A. D... Ao entrar em casa, ela põe o cão no chão para ir buscar água. Volta e encontra o cão empoleirado num quadro. Era um rato dentro de uma pele de cão. Com a cólera, conseguira roer as suas falsas patas.

*
* *
O duque de L... pagava aos guarda-portões do castelo para tratarem do seu velho caniche. Um dia chegou de imprevisto. Ao seu encontro corre um cão amarelo que arrasta atrás de si uma pele branca de caniche. Havia três anos que os guarda-portões disfarçavam o próprio cão deles com a pele do morto.

Jean Cocteau
Ópio
Tradução de Miguel Serras Pereira
Difel, 1984

Oferecido por Rui Almeida.

CÃO – Apelido que deve ter origem em alcunha, o mais antigo individuo que nos aparece documentalmente a usá-lo é um tal Gonçalo Cão, contemporâneo de D. João I. pretendem alguns autores fazer descender aquele Gonçalo de um fidalgo do século XIII que aparece alcunhado nos Livros Velhos de Linhagens com o epíteto de Pestanas de Cão, o que não é comprovável. O tronco documentado desta família surge-nos com Diogo Cão, que foi escudeiro e cavaleiro da Casa do Infante D. Henrique. Ao que parece nauta experimentado, viajou duas vezes à descoberta da costa africana, em 1482 e 1484, feitos que foram recompensados pelo Príncipe Perfeito com uma Carta de mercê de armas novas, com as seguintes: de verde, com dois padrões de prata rematados cada um por uma cruz de azul, firmados em dois montes moventes de um terrado, tudo de sua cor. Timbre: os dois padrões passados em aspa a atados de verde.

Manuel de Sousa
As Origens dos Apelidos das Famílias Portuguesas
2001

Oferecido por Rui Almeida.

POEMA DO CÃO AO ENTARDECER

Um cão no areal corria presto.
Presto corria o cão no areal deserto.


Era ao entardecer, e o cão corria presto
no areal deserto.


Corria em linha recta, presto, presto,
pela orla do mar.
pela orla do mar, em linha recta,
presto, o cão.


Era ao entardecer.
No areal as águas derramadas
nas angústias do mar
lambuzavam de espuma as patas automáticas
do cão que presto, presto, corria em linha recta
pela orla do mar.


Sem princípio nem fim, em linha recta,
pela orla hora espessa, peganhenta e húmida,
em que um resto de luz no espasmo da agonia
geme nas coisas e empasta-as como goma.
No espaço diluído, esfumado e cinzento,
corria presto o cão no areal deserto.
Corria em linha recta, presto, presto,
definindo uma forma movediça
que perfurava a névoa e prosseguia
pela orla do mar, em linha recta,
focinho levantado, olhos estáticos,
fixando o breve ponto onde se encontram
além de todo o longe
as rectas que se dizem paralelas.


Alternavam-se as patas na cadência,
na cadência ritmada do movimento presto,
deixando no areal as marcas do contacto.
Presto, presto.


Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão
no areal deserto.
O ritmo sempre igual, a língua pendurada,
os olhos como brocas, furadores de distâncias.


Em seu último espasmo a luz enrodilhou
o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante.
Era um suposto cão correndo presto, presto,
num suposto areal, realmente deserto,
por uma linha recta mais suposta
que o areal e o mar.
mas presto, presto, sempre presto, presto,
correndo o cão no areal deserto.


António Gedeão
Poemas póstumos
1984


Oferecido por Rui Almeida.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

ADÃO E EVA NO PARAÍSO (fragmento)

[...] E que valiam as garras de Adão, mesmo aliadas às garras de Eva, contra esses pavorosos leões do Jardim das Delícias a que a Zoologia, ainda hoje, arrepiada, chama o Leo Anticus? Ou contra a hiena-espeleia tão ousada, que, nos primeiros dias do Génesis, os anjos, quando desciam ao Paraíso, caminhavam sempre com as asas arregaçadas, para que ela, saltando de entre os bambus, lhes não arrancasse as penas refulgentes? Ou contra os cães, os horrendos cães do paraíso, que, atacando em cerradas e ululantes hostes, foram, nesses começos do homem, os piores inimigos do homem?

[...]

Outros gostos e modos de Eva o irritam também: e por vezes, com uma desumanidade que é já toda humana, nosso Pai arrebata pelos cabelos a sua fêmea, e a derruba, e a pisa sob a pata calosa. Assim um furor o tomou, uma tarde, avistando, no regaço de Eva, sentada diante da fogueira, um cachorrinho mole e trôpego, que ela, com carinho e paciência, ensinava a sugar numa febra de carne fresca. À beira da fonte descobrira o cachorrinho perdido e ganindo; e muito mansamente o recolhera, o aquecera, o alimentara, com uma sensação que lhe era doce, e lhe abria na espessa boca, ainda mal sabedora de sorrir, um sorriso de maternidade. Nosso pai venerável, com as pupilas a reluzir, atira a garra, quer devorar o cachorro que entrara na sua toca. Mas Eva defende o animal pequenino, que treme e que a lambe. O primeiro sentimento de caridade, informe como a primeira flor que brotou dos limos, aparece na Terra! E, com as curtas e roucas vozes que eram o falar de nossos Pais, Eva tenta talvez afiançar que será útil, na caverna do homem, a amizade de um bicho... Adão puxa o beiço trombudo. Depois, em silêncio, mansamente, corre os dedos pelo lombo macio do cachorrinho encolhido. E este é, na história, um momento espantoso! Eis que o homem domestica o animal! Desse cachorro agasalhado no Paraíso nascerá o cão amigo, por ele a aliança com o cavalo, depois o domínio sobre a ovelha. O rebanho crescerá; o pastor o levará; o cão fiel o guardará. Eva, da beira do seu lume, prepara os povos errantes que pastoreiam os gados.
[...]

Eça de Queiroz
Adão e Eva no Paraíso
1897
Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO

(ao Clóvis)

1.

Um cão é por vezes
uma parábola, um conto, uma quimera
diferente do gato por ter a mais
o latido negro e o olhar raiado
de anos
de sangue e de histórias pavorosas.

Tanto cansaço
por um cão! Porque o dia
desfaz-se em pedaços
e subjuga-nos
e já nada é lonjura
limite, precaução
na memória.

Lovecraft
teria tido um cão?
E o cão de Rilke
forma desenhada
exercitando o estro
do seu dono ausente?
Qual o nome
do cão de Diana caçadora?
Não o preferido, o outro
que falhava perdizes e raposas
se adregava de quedar-se
no bosque prematuro
a mijar na caruma, contemplando
lá no alto uma brusca ameaça de luz.

Cão - recorte
de muitas linhas
que se confundem
estranhamente
na ardósia efémera
uma e outra vez
- nada nos dirá nunca
com seu focinho liberto
e sonolento.

2.

“Ninguém para mim morre. Sempre haverá
o movimento que foram e não foram
os homens, as flores, o infinito.

Celebro
não apenas o instante
mas o véu que nos dá
obras e paixões.

Inscrição sobre um muro
que se impõe, silenciosa
como se nela entrasse
o perene sussurro
da mais pura tristeza.

Unindo eternamente
olhos, vozes, planetas”.


in Os objectos inquietantes
nicolau saião


Oferecido pelo próprio.

domingo, 9 de setembro de 2007

O CÃO QUE ERA MORFINÓMANO

Já me deitei. O enfermeiro dorme na minha alcova, numa cama próxima à porta. Deu-me já a última injecção do dia – e só amanhã de manhã, às nove horas – primeiro decreto do ditador que me quer salvar – volto a picar-me. Raras vezes, no meio da noite, eu sentia o termocautério da falta de morfina; e quando tal sucedia – era sempre na noite de domingo para segunda-feira – ou seja, quando, esgotada a reserva de sábado, eu sabia que só na manhã seguinte a poderia obter, legalmente... Nessas madrugadas de pesadelo, erguia-me, com bravezas de esfomeado que se revolta, e deambulava pela cidade, alvoroçando os outros morfinómanos conhecidos, esmolando-lhes umas pepitas de tóxico.
Precisamente por eu saber que estou agora sujeito a um regime severo, inviolável – é que a falta da droga começa a aguilhoar-me...
Só amanhã! Só amanhã! Remexo-me no leito – e sofro, como um enterrado-vivo, a estreiteza do ataúde, ou como um alienado furioso o apertão da camisa-de-forças. Se não tivesse sido hoje; se eu gozasse ainda a autonomia do meu morfinismo – bastava estender a mão, tactear o tampo da mesa-de-cabeceira – e logo encontraria a agulha, a seringa, o frasco da droga...
A chuva continua a fustigar as vidraças – e eu enervo-me, na insónia, prelúdio de outras mais – oh! , quanto mais! – asfixiantes do que esta! Vasculho, na memória, reminiscências amáveis – como um convalescente, saturado de tédio, busca na biblioteca livros amenos, romances de Edgar Wallace ou de Rafael Sabatini.
Recordo então uma página de J. Cocteau – o admirável reformador do teatro francês, dramaturgo e publicista, que trouxe para a mise-en-scene e para a literatura o lápis e paleta de Picasso. Cocteau, opionómano, resolvera curar-se e internara-se nessa Lourdes de todos os que aspiram, fumam, bebem ou se picam com estupefacientes, que é Saint-Cloud.
Na vizinhança do seu quarto existia uma morfinómana mundana. O seu isolamento não era absoluto – porque os médicos tinham transigido com um fox-terrier – que vivia na sua alcova, e que ela estremecia mais do que ao amante que lhe custeava o luxo das toilettes e da cura (a cura era também um luxo, para ambos, porque é chique e caro ser-se tratado ou tratar alguém em Saint-Cloud).
Uma tarde, às quatro horas, Cocteau foi sacudido por uma grita histérica. Era a sua vizinha de quarto que ululava como uma fêmea plebeia – ante as contorções agónicas de um filho. Nela, o instinto maternal despertara na adopção do cachorro – que embalava, desde miúdo, com as fantasias de criança mimando uma boneca. E o fox-terrier, envenenado com guloseimas e carícias para racionais – estrebuchava num ataque – como se se debatesse já com a morte.
– Este mártir está sofrendo há mais de uma hora! – informou a dama, borrifando o bicho, que acalentava ao colo, com o duche lento das lágrimas. – É preciso que lhe anestesiemos a agonia!
E numa brusca resolução – desarvorou, corredor fora – seguida por Cocteau que não sabia ao certo o que ela pretendia. Ao chegar ao gabinete do médico de serviço, entrou, suplicando-lhe, numa veemência ruidosa, que estancasse o tormento do moribundo.
– Não sou, positivamente, a pessoa melhor indicada para a atender – visto que não me formei em Veterinária... – retorquiu o médico. – Mas, em suma, dentro dos recursos da minha ciência, farei o que puder .
– Queria que o doutor lhe désse uma injecção de morfina... – explicou a dama, esganiçando-se num choro convulso.
O clínico cedeu – talvez comovido ante a teatralidade daquele pranto. Encheu a seringa e despejou-a na carne do fox-terrier. O cão, ainda não recebera metade do líquido, já se aquietara, num alívio, como se o tivessem arrancado à bocarra de um lobo. Adormecendo a seguir, recolheu ao quarto, ao macio colo da dona – talvez invejado por Cocteau que não perdia um detalhe do episódio.
...No dia seguinte, pouco antes de soarem as quatro horas – a hora em que o cão fora injectado na véspera – Cocteau surpreende-o a arranhar a porta do médico de serviço, a suplicar, em ganidos ansiosos, que a abrissem. Estava esplêndido, mas queria que lhe dessem outra picadela de morfina...
Dizem que a morfina bestializa os homens! Neste caso humanizou o cão. E nesse instinto de fraternidade maçónica que estreita todos os toxicómanos – senti um arrepio – pensando no pobre bicho – sofrendo já a falta da droga – tal como eu...

Repórter X
Confissões de um ex-morfinómano
1933
Oferecido por Rui Almeida.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

SHAKE DOG SHAKE


The Cure

domingo, 2 de setembro de 2007

MESMO OS NOSSOS SONHOS MAIS EXTRAVAGANTES PODEM SER REALIZADOS

- Caro Feri, aquele terceiro cão não puxa nada bem.
- Infelizmente, o meu chicote é um bocado curto.
- Mas vendo melhor, está também a coxear um pouco.
- Claro que está a coxear, só tem três patas!
- Ah, pois tem... É pena pôr um animal aleijado em frente do carro!
- Ó Ilonka, veja melhor Ilonka. Todos os doze cães têm três pés.
- Oh, coitados!
- Porque não tem pena de mim, Ilonka? Eu percorri todos os esfoladores até que consegui juntar doze cães de três pés.
- Pode ser que não entenda nada do assunto, mas pensava que um cão normal puxa melhor e com mais empenho.
- Não questiono isso. Mas eu sou um verdadeiro citadino. O que faria com doze cães de quatro pés?
- Ó Feri, talvez tenha medo deles?
- Eu tenho medo mesmo da picada de melga. Temos de ter cuidado com as forças da natureza. Digamos que estes cães são de quatro pés. Digamos que ficam descontrolados por alguma razão. Digamos que arrancam o chicote da minha mão... É melhor não pensar nisso, Ilonka!
- Mesmo assim, continuo a não entender. Se receia os cães, por que é que eles puxam o seu carro?
- Porque eu guio mal.
- Isso aprende-se.
- Mais ou menos, Ilonka... O carro e o homem não são partes homólogas.
- Olhe em volta! Não se vê nenhum carro puxado por cães!
- Isso é uma grande pena! Infelizmente, o homem já não é capaz de atingir o ritmo do desenvolvimento da técnica. Usar usa, mas na realidade fica atemorizado com ela.
- Eu não tenho medo dos carros.
- Mas este Simca consegue fazer cento e cinquanta quilómetros por hora...
- Não diga isso Feri, eu adoro a velocidade!
- Você é um pouco insaciável. Saímos há dez dias de Budapeste, e olhe, já estamos em Siófok.
- Com doze cães, esse rendimento não me parece grande coisa.
- Claro que não. Só que eu, ainda em Peste, deixei o travão de mão puxado.
- Você não é um pouco cauteloso de mais?
- Todos somos criados exactamente para ter este ritmo.
- Já viu toda esta gente a olhar para nós?
- Estão com inveja.
- Parecem mais admirados.
- Porque vêem que mesmo os nossos mais extravagantes podem ser realizados.

István Örkény
Histórias de 1 minuto, vol.1
Tradução de Piroska Felkai
Cavalo de Ferro
2004

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

O número um consola-me dos demais números.
Um ser humano consola-me de outros seres humanos.
Uma vida consola-me de todas as vidas,
possíveis e impossíveis.

Ter visto uma vez a luz
é como se a tivera visto sempre.
Ter visto uma só vez a luz
consola-me de não mais voltar a vê-la.

Um amor me consola de todos os amores
que tive e que não tive.
Uma mão me consola de todas as mãos
e até um cão me consola de todos os cães.

Só tenho um receio:
que amanhã chegue a consolar-me
mais o zero do que o um.

Roberto Juarroz
Poesia Vertical
Tradução de Arnaldo Saraiva

terça-feira, 28 de agosto de 2007

I WANNA BE YOUR DOG



Iggy & the Stooges
Oferecido por manuel a. domingos.

FÁBULAS FANTÁSTICAS

A CAUDA DA ESFINGE

Um Cão de temperamento taciturno disse para a Cauda:
- Sempre que me zango retesas-te, toda eriçada; quando estou contente abanas-te; quando me assusto escondes-te a coberto do perigo. És demasiado versátil: revelas todas as minhas emoções. A minha ideia é que as caudas servem para dissimular o pensamento. A minha maior ambição é ser tão impassível como a esfinge.
- Meu amigo, deverás reconhecer as leis e as limitações do teu ser - retorquiu a Cauda, com os movimentos apropriados aos sentimentos exprimidos - e tentar sobressair de outra maneira qualquer. A esfinge tem cento e cinquenta razões para a impassibilidade que te falta.
- E quais são elas? - perguntou o Cão.
- Cento e quarenta e nove toneladas de areia em cima da cauda.
- E...?
- E uma cauda de pedra.


O ÁRBITRO DESINTERESSADO

Dois Cães que disputavam um osso sem que nenhum ficasse em vantagem submeteram a decisão da contenda ao juízo de uma Ovelha. Esta foi ouvindo pacientemente as alegações de cada um e, no fim, atirou com o osso para uma lagoa.
- Por que fizeste tu isso? - perguntaram os Cães.
E respondeu a ovelha:
- Porque sou vegetariana.


UMA CONDIÇÃO INDISPENSÁVEL

Um Súbdito, reformista, entregou uma petição ao Rei dos Cães para que este ordenasse que os estranhos, ao encontrarem-se, se tratassem com amizade e compreensão. O Rei fez sair um decreto real nesse sentido e ordenou ao peticionista que o apregoasse por todo o mundo. Contudo, era escorraçado pelos cães do lugar e cruelmente mordido antes de poder cumprir o seu dever.
- Ai! - disse ele. - Agora percebo que a reforma deve ser precedida pela reformação.


OS LOBOS E OS CÃES

- Por que terá de haver conflitos entre nós? - disseram os Lobos às Ovelhas. - Tudo por causa daqueles cães metediços. Mandai-os embora e a paz reinará entre nós.
- Pelos vistos - retorquiram as Ovelhas -, pensais ser tarefa fácil mandar cães embora.


O CÃO E O REFLEXO

Um Cão que atravessava um ribeiro por cima duma prancha viu o seu reflexo na água.
- Grande burro! - gritou - Como te atreves a olhar-me desse modo insolente?
Enfiou uma pata na água e, agarrando naquilo que supôs ser um maxilar do outro cão, sacou um belo pedaço de carne que o filho de um carniceiro havia atirado à água.

Ambrose Bierce
Esopo emendado & outras fábulas fantásticas
Tradução e Prefácio de Fernando Gonçalves
Antígona
1996

PERPÉTUA

Embora tenha já visto melhores dias, a senhora Dona Perpétua de Noronha não se queixava da existência. A pensão do defunto dava-lhe para viver, as rendas dos seus prédios davam para ir vivendo. Amiúde explicava ela aos muitos cães e gatos que albergava em casa residir o segredo da felicidade no equilíbrio, na sobriedade, na justa medida duma boa orientação patrimonial. E os animais obedientemente esperavam a refeição seguinte refreando uma gula sempre adiada. Calcula-se, por isso, a felina incredulidade e a canina indignação quando Dona Perpétua deu de quebrar a sacrossanta trave-mestra de toda uma vida - a medida, o equilíbrio - e começou a empanturrar os bichos com tudo o que há de melhor. Ele era foie gras, ele era bife da vazia, ele era linguado, ele era pão-de-ló. Tanta ou tão pouca foi a fartura que os cães e gatos desconfiaram, crentes natos na última refeição dos condenados. Daí que, um belo dia, Dona Perpétua de Noronha se visse sozinha no seu enorme casarão, rodeada de iguarias a apodrecer nas marmitas, rodeada de solidão e de cheiro a gato escaldado.

Alface
Cuidado com os Rapazes
1995

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

CÃES

Os portões daquela casa sempre fechados
prendiam três enormes cães que nos viam passar.
Morreram ou levaram-nos, a eles e aos donos.
Os portões abertos ressuscitam, anacrónico, o medo.

Pedro Mexia
Em Memória
2000

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Andrei Semionovich cuspiu numa taça com água. A água ficou imediatamente negra. Andrei Semionovich franziu os olhos e olhou com atenção para a taça. A água estava negra. O coração de Andrei Semionovich desatou a bater com força.
Nessa altura, o seu cão acordou. Andrei Semionovich aproximou-se da janela e mergulhou nos seus pensamentos.
De repente, qualquer coisa grande e escura passou como uma rabanada de vento à frente do seu rosto e saiu a voar pela janela. O cão é que tinha voado e pousado, como um corvo, no telhado do edifício que ficava do outro lado da rua. Andrei Semionovich pôs-se de cócoras e começou a uivar.
O camarada Papugaev entrou abruptamente no quarto.
- O que é que tem? Está doente? - perguntou o camarada Papugaev.
Andrei Semionovich mantinha-se em silêncio e esfregava a cara com as mãos.
O camarada Papugaev deitou um olhar à taça que estava em cima da mesa.
- O que é que tem ali dentro? - perguntou a Andrei Semionovich.
- Não sei - disse Andrei Semionovich.
Papugaev volatizou-se instantaneamente. O cão voltou a entrar pela janela, foi deitar-se no lugar habitual e adormeceu.
Andrei Semionovich aproximou-se da mesa, bebeu a taça com água negra.
E fez-se, na alma de Andrei Semionovich, uma grande claridade.

Daniil Harms
Tradução de Sérgio Moita
Crónicas da Razão Louca
Hiena
Julho de 1994

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Coimbra - zona histórica
Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO NÃO

to Ferdinand Schmatz
Nenhum cão se chama Não porque, como S. José, todos os cães dizem Sim quando lhes aparece o Anjo em sonhos a dizer-lhes que as cadelas suas noivas vão ter cachorrinhos do Espírito Santo.
Mas houve um cão chamado Não porque achava que não era digno de nada. O Anjo apareceu-lhe em sonhos e deu-lhe um beijo no focinho.
-- És tão bom, Não. Tão bonito. -- disse o Anjo a Não -- A tua noiva vai ter cachorrinhos.
-- Mas eu não tenho noiva. -- disse o Não.
-- A Maria quer ser tua noiva e já está à espera dos teus cachorrinhos.
-- Mas eu não sou digno de entrar na morada da Maria.
-- A Maria acha-te graça. Quer acasalar contigo e ter mais cachorrinhos, todos os cachorrinhos que tu quiseres ter.
-- E os cachorrinhos querem-me a mim?
-- Claro que querem, Não. Porque tu viste a tristeza do Bobi, do Tejo e do Guizos quando os donos os abandonaram.

Adília Lopes
A Bela Acordada
1997

OS CÃES

A menina parecia-se com a vestal de uma estela funerária que há nessa cidade e que tem roupas, embora de pedra, finíssimas. Passava, pela mão da mãe, pela orla do terreiro, no ar denso de trovoada.
Esse terreiro onde se armavam as barracas da feira, agora deserto, varrido com ferocidade pelo vento, na hora nefasta do meio-dia, hora em que é perigoso passar debaixo de certas árvores ou contemplar as fontes, tem apenas alguns troncos como ossos de que brotam cotos carecas.
Dos arredores vinha um cheiro acre a queimadas que invadia as casas de mistura com as películas de cinza como se um grande fogo (daqueles que abatem uma a uma as árvores) rondasse a povoação.
Na areia eriçada e vermelha como pêlo, que as rajadas levantavam e atiravam para longe aos punhados, dois cães rodopiavam voltejando e espojando-se, colados um ao outro, pardos e rafeiros.
Os ganidos de um dos cães feriam o ar cinzento e abstruso como se lhe estivessem a fazer mal. A menina, aflita, gritou à mãe:
- O outro vai matá-lo!
Mas a mãe, embaraçada, calou-a:
- Não. É um cão e uma cadela. Não olhes para lá.
Então a menina tapou os ouvidos.

Adília Lopes
O Decote da Dama de Espadas (romances)
1988

domingo, 19 de agosto de 2007

CÃO DA MORTE


MÃO MORTA

BEWARE OF THE DOG


JAMELIA

SOLILOQUIOS E COMMENTARIOS DE ALBINO FORJAZ DE SAMPAIO

As mulheres são como as ovelhas. Todas tem a sua volta tres ou quatro lobos que só esperam que esteja longe o cão que as guarda.
Amor meu, não temas. Bem sabes que os lobos são amigos.
E que eu nunca deixo a coleira de pregos, nem de rosnar, junto de ti...

*

A mordedura do cão cura-se com o pelo do mesmo cão. O Amor de uma mulher com outro amor. São pois identicos, a dentada do cão e o amor da mulher...

*

Que o meu coração é um cão vadio?
É. Jamais quiz coleira. Dorme hoje em edredon de penas, amanhã em qualquer patamar de escada. Mas não tem Mulher que o acorrente, nem Ciume a quem pagar imposto.

Albino Forjaz de Sampaio
Mais Além da Morte e do Amor
1922

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

AURORA(S)

«Era um cão com muita teoria»
- explicou-nos, junto ao aquecedor,
na certeza de que Todorov
não frequenta a travessa do Alcaide,
ao Combro. Aurora, Dona Aurora:
guardiã provisória do declínio
(cor-de-laranja, juro) das paredes
ou dos dias - não há diferença.

Fiz questão de tirar eu próprio
do frigorífico a segunda Sagres.
Já houve naquela rua sete auroras
- não é um verso, apenas um dado
estatístico, vindo de quem sabe.
Algumas, como «histórias verdadeiras»,
casaram ou morreram - tanto faz.

O cão, sem nome, aceita o favor
da trela «noite demasiado morta»
(volta a dizer Aurora). É normal,
há coisas que acontecem sob a sombra
desmentida da cidade. Piano, dessa infância
triste, a apodrecer agora numa taberna
colorida. «P'ra mim é tinto» - repetem
já sem clientes os mais pequenos altares.

Enquanto um tecto sobre nós, vazio,
esconjura metáforas e recusa a noite.

Manuel de Freitas
[SIC]
2002

UM AFORISMO DE KAFKA

Os cães de caça brincam ainda no pátio, mas não lhes escapará a presa, por mais depressa que, a partir desse instante, corra as florestas.

Franz Kafka
Antologia de Páginas Íntimas
Tradução de Alfredo Margarido.

27 DE MAIO

Uma parte de Niklasstrasse e a ponte inteira voltam-se, emocionados, para ver um cão que acompanha, uivando, uma ambulância da Sociedade de Socorros. Até que o cão interrompe bruscamente a corrida, volta para trás e porta-se como um cão estranho e vulgar que, seguindo o carro, não pretendia nada de particular.

Franz Kafka
Antologia de Páginas Íntimas
Tradução de Alfredo Margarido.

BOM-DIA, CÃO

Avisto na rua um cão
Digo-lhe: como vais, cão?
Pensa que me responde?
Não? Pois bem, mas ele responde-me
E isso não é da sua conta
Agora quando se vêem pessoas
Que passam sem sequer reparar nos cães
Sentimos vergonha pelos seus pais
E pelos pais dos seus pais
Porque é uma tão má educação
É coisa que requer pelo menos... e não estou a ser generoso
Três gerações, com uma sífilis hereditária
Mas, para não vexar ninguém, devo acrescentar
Que um número considerável de cães não falam com muita frequência.


9 de Fevereiro de 1948

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução de Margarida Vale do Gato.

Oferecido por Rute Mota.

DE COLEIRA

Ter um filho com um cão
Exige dotes de observação fora do comum
E o profundo conhecimento do factor RH.

Com treinos intensivos
A caça ao coelho, o jogo do nem-te-posso-cheirar
E a corrida ao osso,
Talvez se consiga chegar
Ao nível intelectual necessário para uma compreensão mútua e saudável.

Nas terras em que faltam mulheres
(ou são tapadas, o que vai dar ao mesmo)
Um bom cão é melhor do que a masturbação.

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução de Margarida Vale do Gato.

Oferecido por Rute Mota.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

PARA UM DIA NÃO

(variação sobre tema de A. J. Forte)

Há dias assim só para o não e que
não podem ser do gato são do cão
por isso dias que não são para miar
dias que são só para ladrar ão ão
há dias para tudo e mais alguma coisa
e dias só para o menos e é se tanto
dias em que se não gostava de ser
ou de qualquer coisa ter e o quê então
dias ruins em que não há nada para fazer
em que o simples facto de ter corpo como
toda a gente faz ou tem dá um trabalho
insano um trabalho danado para além
do que ele próprio corpo está em condições
de poder suportar são dias mais para não ser
ou para o não ser ou para o não ter
não ter por exemplo que raio de exemplo
um corpo ou um corpo como este impositivo
porque um corpo assim obstacula muito
com perdão para tamanho palavrão
e logo o devaneio consigo nos transporta
não ter corpo nenhum ser espírito apenas
e de preferência um desses bem vagabundos
porque um espírito assim um apenas espírito
ajuda muito só ele está em condições
de nos poder conduzir melhor
dizendo de ele e só ele se deslocar
aos lugares mais improváveis que são os que
mais vale a pena visitar e que podem ser
lugares do nosso universo próprio lugares
do universo alheio ou quiçá mais delicado
ainda lugares do que não é isto é não lugares
caso este em que estaremos já bastante
próximos do nirvana o que dá sempre jeito
para o dia não chamado o dia do cão

Rui Caeiro
Saudade n.º 9
2007

domingo, 29 de julho de 2007

OS CÃES DE VELÁZQUEZ

Miguel Veiga, querido amigo, perdeu recentemente o seu cão Timmy, com quem o meu Jasão mantinha alguma correspondência de afectos. Quem quer que minorize os sentimentos que nisto se envolvem, ou os torne ojecto de desprezo, merece a mais fria das indiferenças com que se devem tratar os analfabetos da natureza humana. Não tenho a menor simpatia pelas religiões da fraternidade inextensível aos bichos, nem pelos teólogos que transformam o lobo de Gúbio, ou o canídeo que costuma acompanhar São Roque, num adereço metafórico da iconografia da flos sanctorum.
Chegou-me a notícia da morte de Timmy imediatamente a seguir à visita que fiz à exposição de Velàzquez, patente na National Gallery em Londres. Às várias razões que recomendam a mostra a quem puder ir até lá, e que justificam as horas passadas na fila dos que pretendem entrar, haverá que acrescer a de ser Diego Velázquez, ele também, amante desses solidários partícipes dos dias que nos vão cabendo. A consciência com que o pintor se debruça sobre tais criaturas, vendo nelas, mais do que a figura decorativa, o verdadeiro espelho em que se reflecte muito daquilo que somos, converte o percurso das quarenta e seis obras-primas numa empresa de auto-conhecimento, e não numa pura lição que é o que menos importa buscar na frequência de qualquer artista.
Os cães de Velázquez respeitam a estratificação social, e jogam com ela como com uma entidade inamovível. Reaccionários como são, e por isso adversos a medidas de legalização do aborto, acolhem valores certos, preferindo à conveniência política o conforto das relações, e optando pela liberdade de amar como, quando e onde lhes apetece, independentemente dos ditames de qualquer catecismo. São mais proveitosos em suma como exemplo comportamental do que os que no seu afã de reequilibra o Mundo não tardarão a impor o interdito do presépio público, ao qual de resto os animais alegremente concorrem, vendo na cena do nascimento de Jesus Cristo um ameaçador símbolo religioso.
O rafeirito que defende o patriarca Jacob, ao tomar conhecimento do destino de José, seu filho, porventura devorado pelos brutos do deserto, executa afinal a manobra da preservação da dor a que todos nós temos direito, e que não se compadece com ritos ornamentais. É um indivíduo débil, mas tão devotado à guarda da fragilidade de um velho, que não há gladiador de Roma que arroste com a sua fúria.
Os galgos e os perdigueiros, pacientemente aguardando, abrigados pelas sombras da Torre de la Parada, a sua vez de ingressar na montaria ao javali, manifestam a negligência dos grandes áulicos, sempre prontos a receber ordens, e a delas se desempenhar com uma descrição que é nota de respeito, e nunca de desdém. Já o sabujo que se senta à beira de Filipe IV, ascendido a uma dimensão donde apenas o fim terreno o desalojará, cobra a serenidade que o dispensa de efectivas funções, excepto a de posar assim para o retrato de Diego Rodríguez da Silva Velázquez, meio na penumbra, constantemente presente.
Os infantes pequenos beneficiam de uma escolta que, consagrando o império da infância, a encara como uma invulnerabilidade à inteligência dos clássicos irracionais. Baltasar Carlos, incapaz ainda de manobrar a carabina com que o retratista o armou, consente em que a seus pés adormeça um molosso enorme, isto por se encontrar ciente dos impenetráveis sonhos em que são cúmplices. E o mínimo Filipe Próspero, tão pelém que no rosto se lhe adivinha a letal gadanha que anda a rondá-lo, só com o maltês caprichoso, habituado à altura dos cadeirões, aceita dividir os seus choros e as suas birras.
Os cães de Velázquez celebram uma interioridade preciosa, mais afeita às caseiras noites de Inverno do que às tardes de domingo dos centros comerciais. Desaparecidos todos, tendo ascendido a um plano tão incontável como indiscutível, partilham com o saudoso Timmy essa sabedoria dourada a que em exclusivo acedem os que em definitivo entenderam já aquilo que equivale a ser. E até isso lhes agradecemos, até isso lhes invejamos.

Mário Cláudio
Expresso
2006

quarta-feira, 25 de julho de 2007

O teu cão morre

é atropelado por uma carrinha.
encontra-lo na berma da estrada
e enterra-lo.
sentes-te mal com isso.
sentes-te mal por ti mesmo,
mas sentes-te pior pela tua filha
porque era a sua mascote
muito adorada.
ela costumava embalá-lo
e deixá-lo dormir na sua cama.
escreves um poema sobre o assunto.
chamas-lhe um poema para a tua filha,
sobre o atropelamento do cão por uma carrinha
e o modo como cuidaste dele,
o levaste para o bosque
e o enterraste fundo, fundo,
e o poema resulta tão bem
que quase te alegras por o cão
ter sido atropelado, de outro modo
nunca terias escrito esse bom poema.
então sentas-te para escrever
um poema sobre escrever um poema
acerca da morte do tal cão,
mas enquanto o escreves
ouves uma mulher gritar
o teu nome, o teu primeiro nome,
ambas as sílabas,
e o teu coração pára.
passado um minuto, continuas a escrever.
ela volta a gritar.
perguntas-te quanto tempo pode isto durar.

Raymond Carver

Tradução e oferta de Rute Mota.

terça-feira, 24 de julho de 2007

ADAM & THE ANTS - «Dog Eat Dog»

UIVOS

Passam os dias e os anos, a vida corre
e a gente não sabe por que vive...
Passam os dias e os anos, a morte chega
e a gente não sabe por que morre.
E um dia o homem põe-se a chorar sem mais nem menos,
sem saber por que chora...
e o que significa uma lágrima.
E tão-pouco alguém por si o sabe.
E quando mais tarde a gente abala para sempre,
sem saber quem é
nem o que veio cá fazer...
pensa que talvez tenha vindo apenas chorar
e uivar como um cão...
pelo cão de ontem que se foi,
pelo cão de amanhã que virá
e partirá também sem saber para onde
e por todos os pobres cães mortos do mundo.
Porque: não é o homem um pobre cão perdido e solitário sem dono e sem domicilio conhecido?...
E não pode o Homem chorar e uivar no Vento
sem mais nem menos... porque sim
como uiva o mar... Por que uiva o mar?
Senhor Arcipreste... por que uiva o mar?


León Felipe
O Sapateiro de Van Gogh (original de El Ciervo y otros poemas)
tradução de Rui Caeiro
&etc, 1993


Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO E O FRASCO

«-- Meu lindo cãozinho, meu bom cãozinho, meu querido totó, aproxima-te e vem respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.»
E o cão, agitando a cauda, o que é, creio eu, nestes pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e pousa curiosamente o focinho húmido sobre o frasco desarrolhado; depois, recuando com repentino receio, ladra voltado para mim, à maneira de censura.
«-- Ah! cachorro execrável, se eu te houvesse presenteado com um pacote de excrementos, tê-lo-ias farejado com delícia e talvez devorado. Assim, também tu, indigno companheiro da minha triste vida, és semelhante ao público, ao qual nunca se podem apresentar perfumes requintados que o exasperam, mas sim porcarias cuidadosamente escolhidas.»

Charles Baudelaire
O Spleen de Paris
Trad. António Pinheiro Guimarães

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