Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 30 de setembro de 2007

SOB O SIGNO DO CÃO

Piedade pela fome deste cão
por este sangrento pedaço de carne envenenada
Tu sabes não nos prende a piedade
muitas vezes o dissemos muitas vezes
nos perdemos antes de aceitar ficar
nesses corredores sem fim
à volta do mesmo quarto sempre
essas manhãs de lágrimas de repente entrecortadas
por viagens certas velhas casas

E no entanto sou bem eu quem pede
piedade por este cão este pedaço
de sangrenta carne envenenada
Por este rosto macerado
em silêncios de há muito já familiares
por este potro frente à faca

Alguns anos nos separam para que a peças comigo
por este cão faminto pela carne
alguns navios e alguns
litros de álcool no sangue
Eu falo-te da manhã despido por entre o gelo
o corpo aprisionado pelo gelo
é assim que te falo da manhã

Julgo não ter-te dito nunca
que seria sempre verão que se aproxima
no lugar da casa que imagino
tecida enfim à tua volta um dia
Sei que passas com o vento mas que é o vento
que fica afinal dos passos que o atravessam

Nada te peço mais e piso a areia
venho dizer-te ao mar venho perder
a memória nestas ruas vacilantes
e tropeço em ti como num barco
Já te disse tudo - que não posso
dizer-te nada que nãos eja
ainda solidão e não a quebre

Abro ao lume o coração deito-me por terra
fico mais deitado ainda do que à espera
de que bem feitas as contas sempre venhas
Peço piedade por este cão faminto
pelo seu sangrento pedaço de carne envenenada
Por esta palavra que esquece a sua boca
e ao longe de mim fica sem fim a soletrar-te

Miguel Serras Pereira
Corça
Fenda
1982

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