Antologia de textos com cães dentro.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

O CÃO

    Um dia apareceu em minha casa uma senhora com um cão ao colo.
   — Não há quem mo cure! Ninguém mo cura! Por isso vim consultá-lo — declarou-me a mulher, chorosa e desfigurada.
   O animal tinha um carão dolorido, porque a dor não é privativa do homem, sabendo-se que o elefante e o Macacus naurus vertem lágrimas, lágrimas a sério, não essas inventadas pelo fantasiar dos romancistas. 
   Examinei o cãozinho, porque o mais humano e mais sábio é uma pessoa não se ofender quando tal não foi a intenção. Além disso, entre um cãozinho e uma criança...
   O cão fitava-me como os doentes fitam sempre o médico extraordinário que os há-de curar, aquele a que recorrem em última instância, custe o que custar e ande por onde andar.
   Nos laboratórios, muitas vezes esgaravatei o cérebro dos animais e as entranhas deles sem que o coração parasse. Foi nos animais que curei todas as doenças dos homens.
   Este cão tinha cancro e estava nos seus últimos dias. Voltando a examinar, mais do que a doença do cão, a pele dele, percebi que era um cão facilmente substituível. Cão branco com uma mancha preta, como um emplastro de doente dos olhos sobre o olho esquerdo...
   — Minha senhora, o seu cão não tem praticamente nada... Mentem-lhe os que lhe dizem que ele vai morrer irremissivelmente daqui por poucos dias... O seu cão só tem a memória deformada, tenho que lha raspar... Irá esquecer um pouco a dona, não poderá responder pelo nome que tinha, mas há-de viver... Eu ponho-lhe outro nome e curo-lho. Deixe-mo cá ficar.
   — Muito obrigada! Muito obrigada! — gritou-me a senhora, e lá me deixou o cão numa poltrona e ao mesmo tempo com pesetas sobre a mesa...
   Senhora de grande pulseira de correntes — com uma espécie de cadeado no fecho como coleira de cão. Senhora de cauda rendada e de malinha de mão cor de canário. Senhora com um véu às bolinhas que pareciam um enxame de abelhas ou moscardos assanhados com a cara dela, lentamente se sumiu, acenando-me grandes adeuses e dizendo-me em cada degrau: Obrigada! Obrigada! Obrigada!, verdadeira cena de acção de graças que só deve ter acabado quando ela entrou no carro particular, um desses carros enrarecidos e repletos de silêncio azul marinho.
   O cão fitava-me de cima da poltrona com a tristeza do homem que tem um tumor inflamatório ou umas anginas espantosas. Para não perder tempo, apanhei um carro de praça e fui a uma «cãozarria» buscar um cão igual. Lá o encontrei, a mancha era quase igual e só tinha o rabo um pouco mais comprido. Comprei-o com a condição de lhe cortarem doze centímetros no rabo e de ficarem com o cão moribundo. Dias depois devolvi o cãozinho à dona, sorrindo do meu ardil, pois foi este o único humorismo da minha profissão. Tê-la-á abocanhado aquele cão vadio que dava pelo nome de Ninchi?

Ramón Gómez de la Serna, in O Médico Inverosímil, tradução de Júlio Henriques, Antígona, Novembro de 1998, pp. 120-122.

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