Antologia de textos com cães dentro.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

O número um consola-me dos demais números.
Um ser humano consola-me de outros seres humanos.
Uma vida consola-me de todas as vidas,
possíveis e impossíveis.

Ter visto uma vez a luz
é como se a tivera visto sempre.
Ter visto uma só vez a luz
consola-me de não mais voltar a vê-la.

Um amor me consola de todos os amores
que tive e que não tive.
Uma mão me consola de todas as mãos
e até um cão me consola de todos os cães.

Só tenho um receio:
que amanhã chegue a consolar-me
mais o zero do que o um.

Roberto Juarroz
Poesia Vertical
Tradução de Arnaldo Saraiva

terça-feira, 28 de agosto de 2007

I WANNA BE YOUR DOG



Iggy & the Stooges
Oferecido por manuel a. domingos.

FÁBULAS FANTÁSTICAS

A CAUDA DA ESFINGE

Um Cão de temperamento taciturno disse para a Cauda:
- Sempre que me zango retesas-te, toda eriçada; quando estou contente abanas-te; quando me assusto escondes-te a coberto do perigo. És demasiado versátil: revelas todas as minhas emoções. A minha ideia é que as caudas servem para dissimular o pensamento. A minha maior ambição é ser tão impassível como a esfinge.
- Meu amigo, deverás reconhecer as leis e as limitações do teu ser - retorquiu a Cauda, com os movimentos apropriados aos sentimentos exprimidos - e tentar sobressair de outra maneira qualquer. A esfinge tem cento e cinquenta razões para a impassibilidade que te falta.
- E quais são elas? - perguntou o Cão.
- Cento e quarenta e nove toneladas de areia em cima da cauda.
- E...?
- E uma cauda de pedra.


O ÁRBITRO DESINTERESSADO

Dois Cães que disputavam um osso sem que nenhum ficasse em vantagem submeteram a decisão da contenda ao juízo de uma Ovelha. Esta foi ouvindo pacientemente as alegações de cada um e, no fim, atirou com o osso para uma lagoa.
- Por que fizeste tu isso? - perguntaram os Cães.
E respondeu a ovelha:
- Porque sou vegetariana.


UMA CONDIÇÃO INDISPENSÁVEL

Um Súbdito, reformista, entregou uma petição ao Rei dos Cães para que este ordenasse que os estranhos, ao encontrarem-se, se tratassem com amizade e compreensão. O Rei fez sair um decreto real nesse sentido e ordenou ao peticionista que o apregoasse por todo o mundo. Contudo, era escorraçado pelos cães do lugar e cruelmente mordido antes de poder cumprir o seu dever.
- Ai! - disse ele. - Agora percebo que a reforma deve ser precedida pela reformação.


OS LOBOS E OS CÃES

- Por que terá de haver conflitos entre nós? - disseram os Lobos às Ovelhas. - Tudo por causa daqueles cães metediços. Mandai-os embora e a paz reinará entre nós.
- Pelos vistos - retorquiram as Ovelhas -, pensais ser tarefa fácil mandar cães embora.


O CÃO E O REFLEXO

Um Cão que atravessava um ribeiro por cima duma prancha viu o seu reflexo na água.
- Grande burro! - gritou - Como te atreves a olhar-me desse modo insolente?
Enfiou uma pata na água e, agarrando naquilo que supôs ser um maxilar do outro cão, sacou um belo pedaço de carne que o filho de um carniceiro havia atirado à água.

Ambrose Bierce
Esopo emendado & outras fábulas fantásticas
Tradução e Prefácio de Fernando Gonçalves
Antígona
1996

PERPÉTUA

Embora tenha já visto melhores dias, a senhora Dona Perpétua de Noronha não se queixava da existência. A pensão do defunto dava-lhe para viver, as rendas dos seus prédios davam para ir vivendo. Amiúde explicava ela aos muitos cães e gatos que albergava em casa residir o segredo da felicidade no equilíbrio, na sobriedade, na justa medida duma boa orientação patrimonial. E os animais obedientemente esperavam a refeição seguinte refreando uma gula sempre adiada. Calcula-se, por isso, a felina incredulidade e a canina indignação quando Dona Perpétua deu de quebrar a sacrossanta trave-mestra de toda uma vida - a medida, o equilíbrio - e começou a empanturrar os bichos com tudo o que há de melhor. Ele era foie gras, ele era bife da vazia, ele era linguado, ele era pão-de-ló. Tanta ou tão pouca foi a fartura que os cães e gatos desconfiaram, crentes natos na última refeição dos condenados. Daí que, um belo dia, Dona Perpétua de Noronha se visse sozinha no seu enorme casarão, rodeada de iguarias a apodrecer nas marmitas, rodeada de solidão e de cheiro a gato escaldado.

Alface
Cuidado com os Rapazes
1995

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

CÃES

Os portões daquela casa sempre fechados
prendiam três enormes cães que nos viam passar.
Morreram ou levaram-nos, a eles e aos donos.
Os portões abertos ressuscitam, anacrónico, o medo.

Pedro Mexia
Em Memória
2000

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Andrei Semionovich cuspiu numa taça com água. A água ficou imediatamente negra. Andrei Semionovich franziu os olhos e olhou com atenção para a taça. A água estava negra. O coração de Andrei Semionovich desatou a bater com força.
Nessa altura, o seu cão acordou. Andrei Semionovich aproximou-se da janela e mergulhou nos seus pensamentos.
De repente, qualquer coisa grande e escura passou como uma rabanada de vento à frente do seu rosto e saiu a voar pela janela. O cão é que tinha voado e pousado, como um corvo, no telhado do edifício que ficava do outro lado da rua. Andrei Semionovich pôs-se de cócoras e começou a uivar.
O camarada Papugaev entrou abruptamente no quarto.
- O que é que tem? Está doente? - perguntou o camarada Papugaev.
Andrei Semionovich mantinha-se em silêncio e esfregava a cara com as mãos.
O camarada Papugaev deitou um olhar à taça que estava em cima da mesa.
- O que é que tem ali dentro? - perguntou a Andrei Semionovich.
- Não sei - disse Andrei Semionovich.
Papugaev volatizou-se instantaneamente. O cão voltou a entrar pela janela, foi deitar-se no lugar habitual e adormeceu.
Andrei Semionovich aproximou-se da mesa, bebeu a taça com água negra.
E fez-se, na alma de Andrei Semionovich, uma grande claridade.

Daniil Harms
Tradução de Sérgio Moita
Crónicas da Razão Louca
Hiena
Julho de 1994

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Coimbra - zona histórica
Oferecido por Rui Almeida.

O CÃO NÃO

to Ferdinand Schmatz
Nenhum cão se chama Não porque, como S. José, todos os cães dizem Sim quando lhes aparece o Anjo em sonhos a dizer-lhes que as cadelas suas noivas vão ter cachorrinhos do Espírito Santo.
Mas houve um cão chamado Não porque achava que não era digno de nada. O Anjo apareceu-lhe em sonhos e deu-lhe um beijo no focinho.
-- És tão bom, Não. Tão bonito. -- disse o Anjo a Não -- A tua noiva vai ter cachorrinhos.
-- Mas eu não tenho noiva. -- disse o Não.
-- A Maria quer ser tua noiva e já está à espera dos teus cachorrinhos.
-- Mas eu não sou digno de entrar na morada da Maria.
-- A Maria acha-te graça. Quer acasalar contigo e ter mais cachorrinhos, todos os cachorrinhos que tu quiseres ter.
-- E os cachorrinhos querem-me a mim?
-- Claro que querem, Não. Porque tu viste a tristeza do Bobi, do Tejo e do Guizos quando os donos os abandonaram.

Adília Lopes
A Bela Acordada
1997

OS CÃES

A menina parecia-se com a vestal de uma estela funerária que há nessa cidade e que tem roupas, embora de pedra, finíssimas. Passava, pela mão da mãe, pela orla do terreiro, no ar denso de trovoada.
Esse terreiro onde se armavam as barracas da feira, agora deserto, varrido com ferocidade pelo vento, na hora nefasta do meio-dia, hora em que é perigoso passar debaixo de certas árvores ou contemplar as fontes, tem apenas alguns troncos como ossos de que brotam cotos carecas.
Dos arredores vinha um cheiro acre a queimadas que invadia as casas de mistura com as películas de cinza como se um grande fogo (daqueles que abatem uma a uma as árvores) rondasse a povoação.
Na areia eriçada e vermelha como pêlo, que as rajadas levantavam e atiravam para longe aos punhados, dois cães rodopiavam voltejando e espojando-se, colados um ao outro, pardos e rafeiros.
Os ganidos de um dos cães feriam o ar cinzento e abstruso como se lhe estivessem a fazer mal. A menina, aflita, gritou à mãe:
- O outro vai matá-lo!
Mas a mãe, embaraçada, calou-a:
- Não. É um cão e uma cadela. Não olhes para lá.
Então a menina tapou os ouvidos.

Adília Lopes
O Decote da Dama de Espadas (romances)
1988

domingo, 19 de agosto de 2007

CÃO DA MORTE


MÃO MORTA

BEWARE OF THE DOG


JAMELIA

SOLILOQUIOS E COMMENTARIOS DE ALBINO FORJAZ DE SAMPAIO

As mulheres são como as ovelhas. Todas tem a sua volta tres ou quatro lobos que só esperam que esteja longe o cão que as guarda.
Amor meu, não temas. Bem sabes que os lobos são amigos.
E que eu nunca deixo a coleira de pregos, nem de rosnar, junto de ti...

*

A mordedura do cão cura-se com o pelo do mesmo cão. O Amor de uma mulher com outro amor. São pois identicos, a dentada do cão e o amor da mulher...

*

Que o meu coração é um cão vadio?
É. Jamais quiz coleira. Dorme hoje em edredon de penas, amanhã em qualquer patamar de escada. Mas não tem Mulher que o acorrente, nem Ciume a quem pagar imposto.

Albino Forjaz de Sampaio
Mais Além da Morte e do Amor
1922

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

AURORA(S)

«Era um cão com muita teoria»
- explicou-nos, junto ao aquecedor,
na certeza de que Todorov
não frequenta a travessa do Alcaide,
ao Combro. Aurora, Dona Aurora:
guardiã provisória do declínio
(cor-de-laranja, juro) das paredes
ou dos dias - não há diferença.

Fiz questão de tirar eu próprio
do frigorífico a segunda Sagres.
Já houve naquela rua sete auroras
- não é um verso, apenas um dado
estatístico, vindo de quem sabe.
Algumas, como «histórias verdadeiras»,
casaram ou morreram - tanto faz.

O cão, sem nome, aceita o favor
da trela «noite demasiado morta»
(volta a dizer Aurora). É normal,
há coisas que acontecem sob a sombra
desmentida da cidade. Piano, dessa infância
triste, a apodrecer agora numa taberna
colorida. «P'ra mim é tinto» - repetem
já sem clientes os mais pequenos altares.

Enquanto um tecto sobre nós, vazio,
esconjura metáforas e recusa a noite.

Manuel de Freitas
[SIC]
2002

UM AFORISMO DE KAFKA

Os cães de caça brincam ainda no pátio, mas não lhes escapará a presa, por mais depressa que, a partir desse instante, corra as florestas.

Franz Kafka
Antologia de Páginas Íntimas
Tradução de Alfredo Margarido.

27 DE MAIO

Uma parte de Niklasstrasse e a ponte inteira voltam-se, emocionados, para ver um cão que acompanha, uivando, uma ambulância da Sociedade de Socorros. Até que o cão interrompe bruscamente a corrida, volta para trás e porta-se como um cão estranho e vulgar que, seguindo o carro, não pretendia nada de particular.

Franz Kafka
Antologia de Páginas Íntimas
Tradução de Alfredo Margarido.

BOM-DIA, CÃO

Avisto na rua um cão
Digo-lhe: como vais, cão?
Pensa que me responde?
Não? Pois bem, mas ele responde-me
E isso não é da sua conta
Agora quando se vêem pessoas
Que passam sem sequer reparar nos cães
Sentimos vergonha pelos seus pais
E pelos pais dos seus pais
Porque é uma tão má educação
É coisa que requer pelo menos... e não estou a ser generoso
Três gerações, com uma sífilis hereditária
Mas, para não vexar ninguém, devo acrescentar
Que um número considerável de cães não falam com muita frequência.


9 de Fevereiro de 1948

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução de Margarida Vale do Gato.

Oferecido por Rute Mota.

DE COLEIRA

Ter um filho com um cão
Exige dotes de observação fora do comum
E o profundo conhecimento do factor RH.

Com treinos intensivos
A caça ao coelho, o jogo do nem-te-posso-cheirar
E a corrida ao osso,
Talvez se consiga chegar
Ao nível intelectual necessário para uma compreensão mútua e saudável.

Nas terras em que faltam mulheres
(ou são tapadas, o que vai dar ao mesmo)
Um bom cão é melhor do que a masturbação.

Boris Vian
Cantilenas em geleia
Tradução de Margarida Vale do Gato.

Oferecido por Rute Mota.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

PARA UM DIA NÃO

(variação sobre tema de A. J. Forte)

Há dias assim só para o não e que
não podem ser do gato são do cão
por isso dias que não são para miar
dias que são só para ladrar ão ão
há dias para tudo e mais alguma coisa
e dias só para o menos e é se tanto
dias em que se não gostava de ser
ou de qualquer coisa ter e o quê então
dias ruins em que não há nada para fazer
em que o simples facto de ter corpo como
toda a gente faz ou tem dá um trabalho
insano um trabalho danado para além
do que ele próprio corpo está em condições
de poder suportar são dias mais para não ser
ou para o não ser ou para o não ter
não ter por exemplo que raio de exemplo
um corpo ou um corpo como este impositivo
porque um corpo assim obstacula muito
com perdão para tamanho palavrão
e logo o devaneio consigo nos transporta
não ter corpo nenhum ser espírito apenas
e de preferência um desses bem vagabundos
porque um espírito assim um apenas espírito
ajuda muito só ele está em condições
de nos poder conduzir melhor
dizendo de ele e só ele se deslocar
aos lugares mais improváveis que são os que
mais vale a pena visitar e que podem ser
lugares do nosso universo próprio lugares
do universo alheio ou quiçá mais delicado
ainda lugares do que não é isto é não lugares
caso este em que estaremos já bastante
próximos do nirvana o que dá sempre jeito
para o dia não chamado o dia do cão

Rui Caeiro
Saudade n.º 9
2007

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