Antologia de textos com cães dentro.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

DIÁRIO DE UM LOUCO (fragmento)

Novembro, 11
Hoje estive no gabinete do nosso director, afiei para ele vinte e três penas e, para Sua - ai, ai! - Excelenciazinha, afiei quatro. O director adora ter imensas penas em cima da mesa. Uui! Deve ser uma grande cabeça! Sempre clalado, mas a cabeça, acho eu, sempre a reflectir muito. Gostaria muito de saber o que, preferencialmente, ele pensa, o que se trama naquela sua cabeça. Apetecia-me estar por dentro da vida desses senhores, ver de perto todos aqueles esmeros, equívocos, cortesanias, como é, o que eles fazem no seu círculo - era isso que eu gostaria de conhecer! Já pensei por várias vezes ter uma conversa com Sua Excelência, mas, cos diabos, a língua não me obedece: limito-me a dizer que está frio ou calor na rua, não conseguindo articular, definitivamente, mais nada. Gostaria de dar uma espreitadela pela sala de estar, de que apenas vislumbro às vezes a porta aberta, e por mais outra sala a seguir à de estar. Que rica decoração! Que espelhos e porcelanas! Gostaria de dar uma olhada por ali, por aquela parte da casa onde ela, Sua Excelência, vive - era isso que me apetecia! Ver-lhe o boudoir: como se espalham por lá aqueles frasquinhos, vidrinhos, flores, essas coisas que até faz medo respirar para cima delas; como paira lá o seu vestido, que mais se assemelha ao ar do que a um vestido. Gostaria de espiar o seu quarto de dormir... ali, penso eu, são só milagres, um paraíso que, penso eu, nem no céu existe. Que bom seria ver o banquinho onde ela, quando se levanta da cama, põe o pezinho, como calça no pezinho uma meia branca de neve... ai, ai, ai!, nada, nada, calo-me.
Hoje, entretanto, foi para mim como que uma iluminação: lembrei-me da conversa das duas cadelas que ouvira na Avenida Névski. «Ora bem - pensei -, agora vou saber tudo. é preciso interceptar a correspondência entre essas duas malditas cadelas. Hei-de tirar com certeza alguma coisa dessa correspondência.» Confesso que cheguei mesmo a chamar a Medji e a dizer-lhe: «Ouve, Medji, estamos aqui só os dois e, se quiseres, posso também fechar a porta e já ninguém nos vê... conta-me tudo o que sabes da menina. Como é ela? O que faz? Juro por Deus que não conto a ninguém.» Mas a manhosa meteu o rabo entre as pernas, encolheu-se toda e saiu devagarinho pela porta como se não tivesse ouvido nada. Suspeito desde há muito que o cão é bastante mais esperto do que o homem: sempre estive convencido, até, de que o cão sabe falar, só que tem um feitio teimoso. O cão é um político extraordinário: repara em tudo, em todos os passos do homem. Está decidido: custe o que custar, amanhã mesmo vou ao prédio de Zverkov, interrogo Fidèle e, se for possívl, intercepto todas as cartas que Medji lhe escreveu.
Nikolai Gógol
Contos de São Petersburgo
Trad. Nina Guerra, Filipe Guerra
Biblioteca Editores Independentes

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