Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 9 de setembro de 2007

O CÃO QUE ERA MORFINÓMANO

Já me deitei. O enfermeiro dorme na minha alcova, numa cama próxima à porta. Deu-me já a última injecção do dia – e só amanhã de manhã, às nove horas – primeiro decreto do ditador que me quer salvar – volto a picar-me. Raras vezes, no meio da noite, eu sentia o termocautério da falta de morfina; e quando tal sucedia – era sempre na noite de domingo para segunda-feira – ou seja, quando, esgotada a reserva de sábado, eu sabia que só na manhã seguinte a poderia obter, legalmente... Nessas madrugadas de pesadelo, erguia-me, com bravezas de esfomeado que se revolta, e deambulava pela cidade, alvoroçando os outros morfinómanos conhecidos, esmolando-lhes umas pepitas de tóxico.
Precisamente por eu saber que estou agora sujeito a um regime severo, inviolável – é que a falta da droga começa a aguilhoar-me...
Só amanhã! Só amanhã! Remexo-me no leito – e sofro, como um enterrado-vivo, a estreiteza do ataúde, ou como um alienado furioso o apertão da camisa-de-forças. Se não tivesse sido hoje; se eu gozasse ainda a autonomia do meu morfinismo – bastava estender a mão, tactear o tampo da mesa-de-cabeceira – e logo encontraria a agulha, a seringa, o frasco da droga...
A chuva continua a fustigar as vidraças – e eu enervo-me, na insónia, prelúdio de outras mais – oh! , quanto mais! – asfixiantes do que esta! Vasculho, na memória, reminiscências amáveis – como um convalescente, saturado de tédio, busca na biblioteca livros amenos, romances de Edgar Wallace ou de Rafael Sabatini.
Recordo então uma página de J. Cocteau – o admirável reformador do teatro francês, dramaturgo e publicista, que trouxe para a mise-en-scene e para a literatura o lápis e paleta de Picasso. Cocteau, opionómano, resolvera curar-se e internara-se nessa Lourdes de todos os que aspiram, fumam, bebem ou se picam com estupefacientes, que é Saint-Cloud.
Na vizinhança do seu quarto existia uma morfinómana mundana. O seu isolamento não era absoluto – porque os médicos tinham transigido com um fox-terrier – que vivia na sua alcova, e que ela estremecia mais do que ao amante que lhe custeava o luxo das toilettes e da cura (a cura era também um luxo, para ambos, porque é chique e caro ser-se tratado ou tratar alguém em Saint-Cloud).
Uma tarde, às quatro horas, Cocteau foi sacudido por uma grita histérica. Era a sua vizinha de quarto que ululava como uma fêmea plebeia – ante as contorções agónicas de um filho. Nela, o instinto maternal despertara na adopção do cachorro – que embalava, desde miúdo, com as fantasias de criança mimando uma boneca. E o fox-terrier, envenenado com guloseimas e carícias para racionais – estrebuchava num ataque – como se se debatesse já com a morte.
– Este mártir está sofrendo há mais de uma hora! – informou a dama, borrifando o bicho, que acalentava ao colo, com o duche lento das lágrimas. – É preciso que lhe anestesiemos a agonia!
E numa brusca resolução – desarvorou, corredor fora – seguida por Cocteau que não sabia ao certo o que ela pretendia. Ao chegar ao gabinete do médico de serviço, entrou, suplicando-lhe, numa veemência ruidosa, que estancasse o tormento do moribundo.
– Não sou, positivamente, a pessoa melhor indicada para a atender – visto que não me formei em Veterinária... – retorquiu o médico. – Mas, em suma, dentro dos recursos da minha ciência, farei o que puder .
– Queria que o doutor lhe désse uma injecção de morfina... – explicou a dama, esganiçando-se num choro convulso.
O clínico cedeu – talvez comovido ante a teatralidade daquele pranto. Encheu a seringa e despejou-a na carne do fox-terrier. O cão, ainda não recebera metade do líquido, já se aquietara, num alívio, como se o tivessem arrancado à bocarra de um lobo. Adormecendo a seguir, recolheu ao quarto, ao macio colo da dona – talvez invejado por Cocteau que não perdia um detalhe do episódio.
...No dia seguinte, pouco antes de soarem as quatro horas – a hora em que o cão fora injectado na véspera – Cocteau surpreende-o a arranhar a porta do médico de serviço, a suplicar, em ganidos ansiosos, que a abrissem. Estava esplêndido, mas queria que lhe dessem outra picadela de morfina...
Dizem que a morfina bestializa os homens! Neste caso humanizou o cão. E nesse instinto de fraternidade maçónica que estreita todos os toxicómanos – senti um arrepio – pensando no pobre bicho – sofrendo já a falta da droga – tal como eu...

Repórter X
Confissões de um ex-morfinómano
1933
Oferecido por Rui Almeida.

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