Antologia de textos com cães dentro.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O LUGRE (excerto)

TI JOÃO DAS ALMAS: O Albino não foi sempre como hoje é. Eu conheci-o em novo: primeira linha do lugre «Senhora do Mar»!
ZÉ ESPADA: Primeira linha?! (Gargalhada.) Nunca o foi, nunca!
TI JOÃO DAS ALMAS: Tão verdade, como haver Deus no céu: primeira linha, o melhor pescador daquele navio! Digo-te eu, Zé Espada: dobra a língua e não me desmintas!
TÓ VERDE: Pois agora nem pra moço serve... Primeira linha!?
TI JOÃO DAS ALMAS: (tristemente): Foi depois do naufrágio que ele ficou assim: o «Senhora do Mar» afundou-se, a navegar para a Gronelândia, com fogo a bordo. Alguns de vocês hão-de estar lembrados: tu, Zé Robalo, estvas a bordo... e tu, Cara Dura, levavas o teu irmão de contramestre nesse lugre... (Silêncio; evocando.) Onze dias e onze noites no mar: sem água, sem comer, sem roupa, sem nada! (Irado, para os novos.) Vocês... vocês sabem lá o que isto é? Nem tu, Zé Sol; nem tu, Tó Verde; nem tu, Zé Espada... não sabem, não sabem! Onze dias e onze noites! Eram trinta e dois homens e oito botes: quatro em cada dóri. Sabem quantos se salvaram? (Com força, levantando-se.) Sete. Sete, oiçam bem! Os outros morreram todos: muitos de fome e de sede, alguns levados pelas ondas, e uns cinco – ai! estes eram os mais medonhos, aqueles que uma criatura nunca mais pode esquecer, nem de dia, nem de noite! – de juizinho varrido, atiraram-se ao mar, aos gritos, com os olhos rebentados... Nem me quero lembrar! Que Deus me perdoe, mas quando penso naqueles dias, naquelas horas malvadas que nunca mais acabavam... dá-me vontade de cuspir prò céu! (Severo, indignado.) Que admira, que admira, digam-me cá, que o Albino, depois disto, não ficasse o mesmo homem?!...
ZÉ ESPADA: Esta agora! então não querem ver?! Naturalmente foi ele o único que naufragou... A gente sempre ouve cada brisada!
TI JOÃO DAS ALMAS: Assim, do mesmo modo que ele, poucos, raros em toda a frota, fiquem vocês sabendo! Onze dias e onze noites... Ah homens, olhem que no bote do Albino só escapou ele e mais ninguém! Para se aguentar, teve que matar o cão de bordo: e ele gostava do bicho, como se alma cristã fosse! Comeu-lhe a carne crua e bebeu-lhe o sangue ainda quente... É ou não verdade isto, ó Zé Robalo?

Bernardo Santareno
O Lugre – peça em seis actos
1959


Oferecido por Rui Almeida.

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