Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 4 de março de 2007

AMAR UM CÃO (excerto)


_____ houve uma breve hesitação da parte de quem transportava o recém-nascido _____ o meu cão Jade, há muito tempo; muito, e com grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mãe visível,
num berço nem celeste,
nem terrestre. No lugar que toda a planta acolhe, e que o entregara ao medronheiro,
sentia sobre si uma incidência animal alada, que nem era verdadeiramente pássaro,
nem verdadeiramente quadrúpede.

Era um fio de voz soando à altura do corpo musical que compunha a mata, um choro que coincidia com a convulsão das primeiras gotas de chuva; um sentimento ténue envolvia a cabeça emergindo do verde, e as pequeninas patas, saídas de um pano de baptista, não comoviam a planta lenhosa,
já habituada a palpitações e folhas.

mas o ritmo novo que, pouco a pouco, não se identificava com a chuva, e tornava vermelho de tempo activo a atmosfera, fez erguer o medronheiro sobre si mesmo
«que ser tão frágil mais alto do que eu».

Se o ar não tivesse uma densidade leve, teria quebrado Jade. Jade, que acabara de nascer sobre as bagas purpúreas dos medronhos,
e o ruído dos ramos partidos, já pensava. Um pensamento de leite subia nos sítios pedregosos, fora do local da casa, e da cerca com cerros e penhascos. Ele trazia nos olhos um instrumento azul para medir o diâmetro do sol, e dos astros; lia-se neles uma linguagem que só mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca:

«o meu Pai não existe fora da descrição do Sol; caminho através da murta, do aderno, a aroeira, e avistei esta serra em que a memória vê primeiro o porto nascer; mal nasci, situei-me, em vida interior, em face do mar; ergo para a minha dona os meus olhos frágeis, opondo-me a uma adversária que, de certeza, me ama: faço-lhe pedidos

luta comigo;
dá-me a sensação de ter saído vencido, mas com rebeldia.»
Maria Gabriela Llansol
Amar um Cão
1990

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