Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 1 de abril de 2007

O ESTRANGEIRO (excerto)

Ao subir, na escada escura, choquei com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Ia com o cão. Há oito anos que não se largam. O rafeiro tem uma doença de pele que lhe faz cair todo o pêlo e o que o cobre de manchas e de crostas. À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para a frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se. Duas vezes por dia, às onze horas e às seis horas, o velho leva o cão a passear. Fazem há oito anos o mesmo itinerário. Seguem ao longo da Rua de Lyon, o cão a puxar pelo homem até o fazer tropeçar. Põe-se então a bater no bicho e a insultá-lo. O cão roja-se cheio de medo e deixa-se arrastar. Nesse momento é o velho que tem de puxar. Quando o cão se esquece, põe-se outra vez a puxar e é outra vez espancado e insultado. Ficam então os dois no passeio e olham-se, o cão com terror, o homem com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão quer fazer as suas necessidades, o velho não lhe dá tempo e arrasta-o. Se por caso o cão «faz» no quarto, também lhe bate. Isto dura há oito anos. O Celeste diz que «é uma pena», mas no fundo ninguém quer saber. Quando encontrei o Salamano nas escadas ia a insultar o cão: «Bandido! Cão nojento!» Eu disse: «Boas-noites», mas o velho continuava a insultá-lo. Perguntei-lhe o que é que o cão tinha feito. Não me respondeu. Dizia apenas: «Bandido! Cão Nojento!» Percebi que debruçado sobre o animal, estava a arranjar qualquer coisa na coleira. Falei mais alto. Então, sem se voltar para trás, respondeu-me com uma espécie de raiva reprimida: «Está sempre aqui!» Depois foi-se embora puxando pelo cão, que gania e se deixava arrastar.
Albert Camus
O Estrangeiro
Oferta do Ricardo Jorge.

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