Antologia de textos com cães dentro.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

A MINHA SOMBRA VAI CAIR SOBRE O PRIMEIRO CÃO MORTO

A minha sombra vai cair sobre o primeiro cão morto
que uma tarde de esgotamentos funde na realidade
enquanto os braços bálsamo da noite
estendem ao vento um parto desgraçado.

Caminhar da luz para a treva e ver tudo;
vir do mar para a terra
e balançar nos grãos de vento;
beijar-te
e desejar antes ter uso que fazer projectos;
levar a meninice empoleirada no vestuário
e sujar a manhã
com um gesto generoso.

Zenide,
o herói da minha infância,
entra umbrático na minha vida
pelo lado fatal de um triângulo que me toca.
Como uma bala deixo um só dos meus cabelos
para veia do meu sangue.
E quando a névoa me traz uma colina de sargaços,
flor isolada,
num grito atravesso um futuro de limites convulsivos.

As minhas margens,
as minhas alamedas,
o fantasma que comunga comigo todas as madrugadas,
alguns anos de ausência disfarçada de rainha,
uma ardência débil na voz,
a minha folhagem submersa,
espaço e mais espaço a fulgir no meu corpo renovado
eis o átrio-astro da minha milenária profundidade.

Navego o vendaval
e nas minhas asas
música nenhuma me ama tanto
como eu beijo o incêndio dos teus seios.
Nenhuma neve esquecida dos meus passos
pulsa como tu.

Crescem nos meus dedos meiguices
e sempre
um quante mistério de outono
estremece na claridade da minha memória.
De penhasco em penhasco
vives em juventude um beijo que te espera
e que te escolhe
para alargar a solidão das mansões.

É dia nas águas onde a minha sede envolve pensamentos mágicos
e lento
o meu tossir
adivinha a fonte doente
que rasga na neblina os cérebros raros e escuros.

As chamas atravessam placidamente a rua
e vão beber com toda a equipagem do navio de meditações.

Morre num palácio
entre sedas claras
um mártir cavaleiro
que entrou em agonia
quando a catedral abriu os seus amplos claustros ao derradeiro par em lua-de-mel.

Sem cessar
do outro lado da lua cheia
o cão amadurece os seus sonhos de saber morrer.
O bafo do mar
abre-me aos nervos uma porta sobre a vida.
Entrançadas
morte e vida
são uma estrada para o sul da eternidade.

Nos olhos de um palhaço,
nas asas do milhafre,
desponta manso o teu olhar diferente
meu próprio fragmento livre
brotando furioso num gemido
sol no azul do universo.

A estrela descuidada
dá-me o teu cabelo loiro.
Aqui e ali
a paisagem prolonga-se
até aos limites do meu chamamento.
Hoje
bate à vidraça o cavername das ondas
e uma vela veste o meu silêncio
cada vez mais areal solene
mais eu e tu:
-silêncio do meu ser.

Fernando Alves dos Santos
Diário Flagrante
1954

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