A minha sombra vai cair sobre o primeiro cão morto
que uma tarde de esgotamentos funde na realidade
enquanto os braços bálsamo da noite
estendem ao vento um parto desgraçado.
Caminhar da luz para a treva e ver tudo;
vir do mar para a terra
e balançar nos grãos de vento;
beijar-te
e desejar antes ter uso que fazer projectos;
levar a meninice empoleirada no vestuário
e sujar a manhã
com um gesto generoso.
Zenide,
o herói da minha infância,
entra umbrático na minha vida
pelo lado fatal de um triângulo que me toca.
Como uma bala deixo um só dos meus cabelos
para veia do meu sangue.
E quando a névoa me traz uma colina de sargaços,
flor isolada,
num grito atravesso um futuro de limites convulsivos.
As minhas margens,
as minhas alamedas,
o fantasma que comunga comigo todas as madrugadas,
alguns anos de ausência disfarçada de rainha,
uma ardência débil na voz,
a minha folhagem submersa,
espaço e mais espaço a fulgir no meu corpo renovado
eis o átrio-astro da minha milenária profundidade.
Navego o vendaval
e nas minhas asas
música nenhuma me ama tanto
como eu beijo o incêndio dos teus seios.
Nenhuma neve esquecida dos meus passos
pulsa como tu.
Crescem nos meus dedos meiguices
e sempre
um quante mistério de outono
estremece na claridade da minha memória.
De penhasco em penhasco
vives em juventude um beijo que te espera
e que te escolhe
para alargar a solidão das mansões.
É dia nas águas onde a minha sede envolve pensamentos mágicos
e lento
o meu tossir
adivinha a fonte doente
que rasga na neblina os cérebros raros e escuros.
As chamas atravessam placidamente a rua
e vão beber com toda a equipagem do navio de meditações.
Morre num palácio
entre sedas claras
um mártir cavaleiro
que entrou em agonia
quando a catedral abriu os seus amplos claustros ao derradeiro par em lua-de-mel.
Sem cessar
do outro lado da lua cheia
o cão amadurece os seus sonhos de saber morrer.
O bafo do mar
abre-me aos nervos uma porta sobre a vida.
Entrançadas
morte e vida
são uma estrada para o sul da eternidade.
Nos olhos de um palhaço,
nas asas do milhafre,
desponta manso o teu olhar diferente
meu próprio fragmento livre
brotando furioso num gemido
sol no azul do universo.
A estrela descuidada
dá-me o teu cabelo loiro.
Aqui e ali
a paisagem prolonga-se
até aos limites do meu chamamento.
Hoje
bate à vidraça o cavername das ondas
e uma vela veste o meu silêncio
cada vez mais areal solene
mais eu e tu:
-silêncio do meu ser.
Fernando Alves dos Santos
Diário Flagrante
1954
Antologia de textos com cães dentro.
Etiquetas
- A. M. Pires Cabral
- Abel Neves
- Adalberto Alves
- Adélia Prado
- Adília Lopes
- Adriana Areal Calvet
- Adriana Zapparoli
- Agustina Bessa-Luís
- Aimé Césaire
- Albert Camus
- Alberto Pimenta
- Alberto Soares
- Albino Forjaz de Sampaio
- Alexandre Bonafim
- Alexandre O'Neill
- Alface
- Álvaro de Campos
- Álvaro Fausto Taruma
- Amadeu Baptista
- Ambrose Bierce
- Ana Hatherly
- Anite
- Anna Swir
- Anne Perrier
- Anne Portugal
- Antonia Pozzi
- António Aleixo
- António Cabrita
- Antonio Gamoneda
- António Gedeão
- António José Forte
- António Manuel Couto Viana
- António Nobre
- António Osório
- Antonio Vivaldi
- Armando Silva Carvalho
- Armindo Rodrigues
- Augusto Baptista
- Azinhal Abelho
- Bernardo Santareno
- Bertolt Brecht
- Boris Vian
- Canção
- Carlos Alberto Machado
- Carlos Bessa
- Carlos de Oliveira
- Carlos Drummond de Andrade
- Carlos Leite
- Carlos Marques Queirós
- Carlos Nejar
- Catarina Santiago Costa
- CÉLINE
- Cesare Pavese
- Charles Baudelaire
- Charles Bukowski
- Charles Fourier
- Cristovam Pavia
- Dalton Trevisan
- Dâmaso Alonso
- Daniel Jonas
- Daniil Harms
- Décio Pignatari
- Dimíter Ánguelov
- Diogo Alcoforado
- Donald Bartheleme
- Eça de Queiroz
- Eduarda Chiote
- Eduardo Galeano
- Eduardo Olímpio
- Eduardo Pitta
- Eduardo White
- Elsa Anahory
- Ensaio
- Eugénio de Andrade
- Fabrício Carpinejar
- Fernando Alves dos Santos
- Fernando Assis Pacheco
- Fernando de Castro Branco
- Fernando Luís Sampaio
- Fernando Machado Silva
- Fernando Pessoa
- Ferreira Gullar
- Fiama Hasse Pais Brandão
- Filipe Guerra
- Francisco Bugalho
- Francisco Duarte Mangas
- Franz Kafka
- Gez Walsh
- Gil de Carvalho
- Goethe
- Gonçalo M. Tavares
- Gottfried Benn
- Guilherme de Azevedo
- Gustave Flaubert
- H. P. Lovecraft
- Hans-Ulrich Treichel
- Heitor Ferraz
- Helder Macedo
- Henrique Manuel Bento Fialho
- Henry David Thoreau
- Herberto Helder
- Hugo Claus
- Hugo Williams
- Imagem
- Inês Lourenço
- Irene Lisboa
- István Örkény
- Jacques Tati
- Javier Tomeo
- Jean Cocteau
- Jim Harrison
- Joan Vergés
- João Almeida
- João Camilo
- João de Deus
- João Habitualmente
- João Miguel Fernandes Jorge
- João Pedro Azul
- Joaquim Castro Caldas
- Joaquim Pessoa
- Jonathan Swift
- Jorge de Sena
- Jorge Fallorca
- Jorge Gomes Miranda
- Jorge Roque
- José Agostinho Baptista
- José Alberto Oliveira
- José Ángel Cilleruelo
- José António Almeida
- José Bento
- José Craveirinha
- José Pinto Carneiro
- José Régio
- José Ricardo Nunes
- José Santiago Naud
- José Saramago
- José Sebag
- Juana Castro
- Judith Herzberg
- Júlio Castañon Guimarães
- Júlio Henriques
- Karen Finley
- Karl Kraus
- Khalil Gibran
- Laís Chaffe
- León Felipe
- Leonardo Gandolfi
- Liberato
- Livros
- Luís de Camões
- Luís Miguel Nava
- Malcolm Lowry
- manuel a. domingos
- Manuel de Castro
- Manuel de Freitas
- Manuel de Seabra
- Manuel de Sousa
- Manuel Moya
- Manuel Resende
- Marcial
- Marcin Sendecki
- Marco Denevi
- Maria da Inquietação Fausto
- Maria F. Roldão
- Maria Gabriela Llansol
- Maria Velho da Costa
- Marina Tadeu
- Marina Tsvetayeva
- Mário Cesariny
- Mário Cláudio
- Mário Contumélias
- Mário-Henrique Leiria
- Mark Twain
- Max Aub
- Miguel Serras Pereira
- Miguel Torga
- Miguel-Manso
- Milton D. Heifetz
- Milton Torres
- Miquel Bauçã
- Miriam Reyes
- Narrativa Estrangeira
- Narrativa Portuguesa
- Natália Correia
- Neil Young
- Nicolau Saião
- Nikolai Gógol
- Nunes da Rocha
- Nuno Costa Santos
- Nuno Félix da Costa
- Nuno Júdice
- Nuno Moura
- Paolo Buzzi
- Paula Glenadel
- Pedro Homem de Mello
- Pedro Mexia
- Peter Levi
- Pierre Louÿs
- Poesia Estrangeira
- Poesia Portuguesa
- Provérbio
- R. Lino
- Rainer Maria Rilke
- Ramón Gómez de la Serna
- Raul Malaquias Marques
- Raymond Carver
- Rei David
- Renato Suttana
- Repórter X
- Roberto Juarroz
- Rogério Rôla
- Rosa Alice Branco
- Ruben A.
- Rui Baião
- Rui Caeiro
- Rui Carlos Souto
- Rui Costa
- Rui da Costa Lopes
- Rui Knopfli
- Rui Manuel Amaral
- Ruy Belo
- Samuel Beckett
- Sarah Kirsch
- Sergei Yesenin
- Sérgio Godinho
- Silvia Chueire
- Sítios
- Sophia de Mello Breyner Andresen
- Tomas Tranströmer
- Tymnes
- Urbino de San-Payo
- valter hugo mãe
- Vasco Costa Marques
- Vergílio Ferreira
- Vídeo
- Vinicius de Moraes
- Vitorino Nemésio
- Vladimir Maiakovski
- Wil Tirion
- Wladimir Saldanha
Arquivo do blogue
-
►
2021
(12)
- dezembro (1)
- setembro (1)
- julho (1)
- junho (1)
- maio (1)
- abril (1)
- março (2)
- fevereiro (1)
- janeiro (3)
-
►
2015
(10)
- dezembro (1)
- novembro (1)
- agosto (2)
- junho (1)
- abril (1)
- março (2)
- fevereiro (1)
- janeiro (1)