Antologia de textos com cães dentro.

terça-feira, 17 de junho de 2008

O LOBISOMEM

O amor é para mim um iroquês
De cor amarela e feroz catadura
Que vem sempre a galope, montado
Numa égua chamada Tristeza.
Ai, Tristeza tem cascos de ferro
E as esporas de estranho metal
Cor de vinho, de sangue e de morte,
Um metal parecido com ciúme.

(O iroquês sabe há muito o caminho e o lugar
Onde estou à mercê:
É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,
Passando por entre uns arvoredos colossais
Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão.)
Outro dia senti um ladrido
De concreto batendo nos cascos:
Era o meu Iroquês que chegava
No seu gesto de anti-Quixote.
Vinha grande, vestido de nada
Me empolgou corações e cabelos
Estreitou as artérias nas mãos
E arrancou minha pele sem sangue
E partiu encoberto com ela
Atirando-me os poros na cara.
E eu parti travestido de Dor,
Dor roubada da placa da rua
Ululando que o vento parasse
De açoitar minha pele de nervos.
Veio o frio com olhos de brasa
Jogou olhos em todo o meu corpo;
Encontrei uma moça na rua,
Implorei que me desse sua pele
E ela disse, chorando de mágoa,
Que era mãe, tinha seios repletos
E a filhinha não gosta de nervos;
Encontrei um mendigo na rua,
Moribundo de fome e de frio:
«Dá-me a pele, mendigo inocente,
Antes que Ela te venha buscar.»
Respondeu carregado por Ela:
«Me devolves no Juízo Final?»;
Encontrei um cachorro na rua:
«Ó cachorro, me cedes tua pele?»
E ele, ingénuo, deixando a cadela
Arrancou a epiderme com sangue
Toda quente de pêlos malhados
E se foi para os campos de lua
Desvestido da própria nudez
Implorando a epiderme da lua.
Fui então fantasiado a travésti
Arrojado na escala do mundo
E não houve lugar para mim.

Não sou cão, não sou gente – sou Eu.

Iroquês, Iroquês, que fizeste?


Décio Pignatari
Antologia de Poesia Brasileira do Século XX – Dos Modernistas à Actualidade

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