Antologia de textos com cães dentro.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

EU, QUE PASSEI...

Eram gritos de uma dor humana
e um vento distante nas copas das árvores
embalando o silêncio e a lividez da rua
tortuosa, ambígua, de altos e mesquinhos prédios,
e becos e escadas e água correndo perdida
na beira de um passeio em que de súbito
havia janelas pequeninas, longíncuas, e uma luz enorme
suspensa entre nuvens, a cidade inteira
vista só de um lado como os gritos.

Um cão se esgueira de um caixote voltado.
E um vulto, encolhido no portal de onde o cão saíra,
dorme profundamente a solidão e o frio,
a casa, a cama e a mesa, tantas, tantas,
que mal os gritos se ouvem... tê-los-ia ouvido
eu que passei, que só passei, no sonho
de um vulto adormecido, que nele fui
a mão amiga, o rosto sorridente, a porta entreaberta,
os passos que se perdem no corredor comprido,
ao fundo a claridade, imensa gente, a vida,
a que é dos outros, se adivinha, vozes -
meus passos tristes mais um cão que foge.

23/4/48

Jorge de Sena
Pedra Filosofal
1950

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