Antologia de textos com cães dentro.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O MANUAL DAS MÃOS (fragmento)

Deverei ter adormecido, deduzo, enquanto revisito, pelas janelas, o movimento da rua lá em baixo. Há gente que lembro sobre elas, velhas fotografias amarelecidas que vivem ordenadas na memória, e o sol, outra vez, riscando o soalho e acendendo o chão sobre o qual estou de pé e estático, ouvindo gargalhadas e choros de crianças que em algum lugar em mim as conheci. São os meus filhos brincando na nudez infantil da sua beleza, as harpas que as suas mãos vão soltando para que as toque ou cante a relva que de dentro da casa é verde e eu diviso.
Meu Deus, como é boa esta visão profunda e sentida, as cores com que a construo e respiro, o assobiar levitante dos pássaros rasando-me os pés como se me quisessem erguido acima do equilíbrio e da sóbria gravidade.
O cão que nunca tive, tenho-o agora e vem correndo ao meu encontro com a alegria canina balanceando-lhe a cauda. Nem nome tem para mim e ele próprio o desconhece. Também para que serve um nome se a gente ama e respeita, para que serve essa identificação se a amizade, aqui, tem a precisão olfactiva da lealdade?
Ergo-o para o colo, para uma ternura profunda a ladrar-me o coração e o cão agita-se em sua bondade, quase fala, quase grita, quase beija a compreensão que ele entende ver em minhas mãos afagando-o. Ponho-o sobre o chão e vejo-o partir como uma gazela soltando o perfume da mestria e da graciosidade.
Parte rumo às crianças ou, então, para a ideia que tenho delas. Por isso acendo-me nas luzes que ardo dentro, na clareza juvenil do sangue a trabalhar nas veias todas, no coração que o filtra, o purifica, o devolve à vida da respiração. E a música vem surpreender-me, sentado na mesa, alvo e puro como uma canção e entrando, definitivamente, pela casa dentro.
Eduardo White
O Manual das Mãos
Campo das Letras
2004
Oferecido por José Eduardo Lopes.

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