Antologia de textos com cães dentro.

terça-feira, 3 de junho de 2008

MAIS FÁBULAS FANTÁSTICAS

O CÃO DE FOCINHO NO RABO

Ao avistar um Caniche, um leão desatou a rir-se, a bandeiras despregadas, do ridículo espectáculo.
- Já se viu animal tão pequeno? – perguntou.
- É bem certo – replicou o Caniche, num tom de austera dignidade – eu ser pequeno, mas peço-lhe, meu senhor, que repare em que sou Cão de focinho no rabo.



DOIS CÃES

O Cão, ao ser criado, ficou com uma cauda rígida; mas, após séculos de existência sem alegria, vendo-se ignorado pelo Homem, que o forçava a trabalhar para merecer o pão quotidiano, solicitou ao Criador que lhe concedesse o dom de abanar o rabo. Uma vez o requerimento deferido, viu-se o Cão capaz de dissimular ressentimentos com um sinal de afecto, passando a terra, daí em diante, a pertencer-lhe, com toda a sua abundância. Ao reparar nisso, o Político (animal criado muito mais tarde) rogou ao Senhor que também o dotasse de movimento. Mas como não possuía apêndice caudal, foi-lhe dado mover os queixos, que, hoje em dia, agita com bastante proveito e satisfação, menos à hora das refeições.


DECEPÇÃO

Tinha-se um Cão cansado de tal maneira a correr atrás da própria cauda, que acabara por abandonar a perseguição, enrolando-se todo para descansar. Uma vez nesta posição, apercebeu-se de que tinha a cauda mesmo a jeito e ferrou-lhe os dentes com tal avidez que a largou logo a seguir, cheio de dores.
- Afinal de contas – concluiu – há mais prazer na perseguição do que na posse.


O CÃO E O MÉDICO

E perguntou o Cão ao Médico que tinha ido assistir ao funeral de um dos seus ricos clientes:
- Quando é que o senhor doutor tenciona desenterrá-lo?
- Mas porque é que o hei-de desenterrar? – perguntou o Médico.
- Eu, quando meto um osso debaixo do chão – declarou o animal – é com a ideia de, mais tarde, o tirar cá para fora, e meter-lhe o dente.
- pois é, mas os que eu enterro – explicou o Esculápio – já nada têm que roer.


O ESPELHO

Um «Epagneul», de sedosas orelhas, descendente em linha recta do rei Carlos II, olhou, um dia, por acaso, para um espelho preso à parede de uma sala do rés-do-chão da casa da dona. Ao ver a sua imagem, pensou que se tratava doutro cão, lá fora, e declarou:
- Eu sou muito capaz de, com duas dentadas, dar cabo daquele miserável animalejo, e é o que vou já fazer.
Mal disse isto, saiu a correr para os lados da casa onde lhe parecia que se encontrava o seu inimigo. Ora deu-se o caso de lá estar um Buldogue, de dentuça arreganhada ao sol. O «Epagneul» parou logo, tolhido por uma terrível consternação. A seguir, depois de, por momentos, ter examinado o Buldogue a distância respeitável, badalou-lhe umas coisas neste estilo:
- Não sei se o senhor cultiva as artes da paz ou se prefere desfraldar o estandarte das batalhas, prosseguindo pela via da guerra. Se é um civil, pode-se muito bem dizer que as janelas desta casa o lisonjeiam mais do que o faria um jornal; mas se é um soldado, pode afirmar-se que são muito injustas para consigo.
O Buldogue não percebeu patavina de tanto palavreado; limitou-se a sorrir, com toda a delicadeza, o que muito assustou o «Epagneul», que, logo ali, esticou o pernil.


O FACTOR ESQUECIDO

Um Homem tinha um belo Cão e, depois de, com todo o cuidado, lhe ter escolhido companheira, conseguiu criar um bom número de animais de inteligência quase angelical. Apaixonando-se, entretanto, pela sua lavadeira, o tal Homem casou-se com ela, e criou uma ninhada de cretinos.
- Ai de mim! – lamentou-se, contemplando tão deplorável resultado. – Se eu tivesse posto na escolha da minha, metade dos cuidados que dediquei à escolha de companheira para o meu cão, seria hoje um pai feliz e orgulhoso da sua prole.
- Não estou assim tão certo disso – comentou o Cão, que ouvira, por acaso, a palinódia. – É verdade haver uma grande diferença entre os seus filhos e os meus, mas lisonjeia-me o facto de a mesma não ser inteiramente devida às respectivas mães. Olhe que eu e o senhor também não somos nada parecidos.


Ambrose Bierce
Fábulas Fantásticas
tradução de João da Fonseca Amaral
Editorial Estampa, 1977

Oferecido por Rui Almeida.

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