Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 8 de junho de 2008

[primeiro parágrafo de] Correr fado


Há que tempos não via um corrilário assim! Sume-te, diabo! Deixa-me entrar, deixa-me entrar! Vinha agora a descer o caminho ali em cima, antes das alminhas da Moita, e passou por mim um corrilário, Deus me livre! Eram para aí uns cinquenta cães. Mais! Todos em magote a descer por lá abaixo, a ladrar e a uivar, que barulheira! Eu encostei-me ao muro da Quinta da moita e fiquei lá queda, com o xaile a cobrir a cabeça, nem virei a cara quando aquilo passou. Há que tempos não via um corrilário assim! Eram mais de cinquenta cães. Antigamente viam-se muitos, agora nem tanto. Em noites claras como esta, a gente costumava ouvi-los e nem se atrevia a sair da porta para fora: «Deixem ir as almas penadas que aí vão», dizia a minha mãe. «Sume-te, diabo!» E a minha mãe benzia-se logo três vezes. É que aqueles corrilários, dizem os antigos, são almas penadas que andam por aí perdidas e se se metem connosco pode ser perigoso. Quando se vê um corrilário é logo esconder a cara e não fazer barulho, para eles passarem sempre a eito. Se não a canzoada vira-se a nós e não se sabe o que pode acontecer. E ali, assim que cheguei às alminhas da Moita, benzi-me logo três vezes. Deixem-me sentar aqui perto do fogão que me está a faltar o ar. Lá fora está um frio que tolhe.

José Pinto Carneiro
Vende-se
Cotovia, 1996


Oferecido por Rui Almeida.

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