Antologia de textos com cães dentro.

domingo, 23 de novembro de 2008

ALEGRIA BREVE

– Come!
Ele hesita, sem perceber: que faço eu ali na posição de tiro?
– Come, estupor! – berro alucinado.
Assusta-se, dá um pequeno salto de recuo. Então comovo-me, não por pena dele – pena por quem?
– Come, Médor! – repito com doçura.
Come em esperança o alimento da vida. Estamos fora do tempo e do mundo, na paragem breve ou longa para o balanço de um recomeço possível. Ninguém nos vê, tudo em nós é gratuito, separado de uma coordenação. O que se passa entre nós não tem leis que o classifiquem, um sinal que o distinga. É um acto absoluto e vazio – um acto de vida. Médor olha-me ainda, a interrogar. Olha de baixo, do fundo do seu medo e da sua estupefacção. Nesse instante-limite, tudo quanto lhe é da vida passada e futura vem à superfície aguada dos seus olhos. Quero que ele coma, não o posso matar em aflição. Espero que se decida, ponho a espingarda em descanso. O mundo espera comigo.
– Come, Médor!

Vergílio Ferreira, Alegria Breve (excerto), Lisboa: Bertrand, 7ª edição, 2004, p. 147

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